A morte de Johan Galtung, no passado sábado, retira do nosso convívio um espírito indomável que mudou o modo de compreender a paz e o papel dos intelectuais acerca dela. Há um antes e um depois de Galtung no estudo da conflitualidade e da sua transformação em paz.

Com uma formação académica multidisciplinar (Matemática e Sociologia), Galtung fundou o Peace Research Institute, em Oslo, em 1959, e o Journal of Peace Research, em 1964. Num tempo em que o estudo da paz era, na verdade, o estudo das guerras e este era feito segundo padrões positivistas de matriz estatística e na busca de permanências históricas, Galtung operou um corte radical com essa linha hegemónica de pensamento e abriu caminho aos Estudos para a Paz. Sublinho a palavra “para”. Segundo Galtung, estudar a paz não se faz na distância assética entre o investigador e a realidade, é sim a produção de um conhecimento comprometido com a transformação da realidade das violências. E é essa ausência das violências – e não apenas da guerra – que Galtung assume como paz. Ou seja, mudar as violências e mudar o pensamento sobre elas – eis a tarefa dos intelectuais do nosso tempo.

Violências no plural, sublinho. O primeiro grande legado intelectual de Galtung foi a evidenciação de que, além da violência direta (as condutas manifestas de agressão, ofensa ou eliminação do outro), é também violência a que, sem ser praticada por um agente concreto para infligir sofrimento, resulta da estrutura social e da desigual distribuição de poder e, portanto, na negação de oportunidades ou de níveis de realização pessoal e coletiva em virtude do modo como as sociedades se organizam económica e politicamente – e a isso Galtung chamou violência estrutural. E é também violência a ação de dispositivos artísticos, religiosos ou linguísticos apontada à legitimação das violências direta e estrutural – e a isso Galtung chamou violência cultural.

No pensamento de Galtung, a paz é o avesso destas violências e não apenas da violência direta. É, pois, o resultado de um programa de transformação social, económica, cultural, política e também pessoal. Nisso consiste o segundo grande legado intelectual de Galtung: a paz negativa – ou seja, à ausência de conflito violento – é uma paz mínima. Certamente de um valor inestimável para quem é atingido pela violência direta. Mas, ainda assim, uma paz que deixa potencialmente intocadas as dinâmicas sem rosto que tornam uma sociedade violenta e potencialmente explosiva. Paz positiva é o nome que Galtung deu à condição coletiva resultante da anulação das diferentes camadas de violência.

E essa anulação tem de ser, ela própria, pacífica. A paz por meios pacíficos, título de uma das suas obras mais relevantes, traz para o centro da reflexão o resgate da tradição da não-violência e do seu potencial transformador. A rede Transcend, que fundou em 1993, lega-nos um património imenso de reflexão e de experiência sobre o triângulo Diagnóstico-Prognóstico-Terapêutica como metodologia de intervenção em conflitos de várias escalas.

Johan Galtung morre num momento em que a “III Guerra Mundial aos pedaços”, na expressão do Papa Francisco, ganha intensidade e alcance cada vez mais dramáticos. Num contexto assim, o desafio que nos é lançado é o de darmos continuidade à luta pela paz e aprofundarmos os estudos para (!) a paz.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

QOSHE - Na morte de Johan Galtung: investigar para a paz (positiva) - José Manuel Pureza
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Na morte de Johan Galtung: investigar para a paz (positiva)

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18.02.2024

A morte de Johan Galtung, no passado sábado, retira do nosso convívio um espírito indomável que mudou o modo de compreender a paz e o papel dos intelectuais acerca dela. Há um antes e um depois de Galtung no estudo da conflitualidade e da sua transformação em paz.

Com uma formação académica multidisciplinar (Matemática e Sociologia), Galtung fundou o Peace Research Institute, em Oslo, em 1959, e o Journal of Peace Research, em 1964. Num tempo em que o estudo da paz era, na verdade, o estudo das guerras e este era feito segundo padrões positivistas de matriz estatística e na busca de permanências históricas, Galtung operou um corte radical com essa linha hegemónica de pensamento e abriu caminho aos Estudos para a Paz. Sublinho a palavra “para”. Segundo Galtung, estudar a paz não se faz na distância assética entre o investigador e a realidade, é sim a........

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