2004 foi um ano carregado de grandes acontecimentos no panorama internacional e nacional: os Estados Unidos admitem que o Iraque não possuía armas de destruição massiva (motivo que deu origem a mais um conflito armado de grande escala), ocorre um atentado terrorista em Madrid, um tsunami provoca uma destruição de enormes proporções no sudeste asiático, o Facebook é criado; e por cá celebra-se o futebol com a Selecção Nacional a chegar à final do Euro enquanto cresce uma crise política com a dissolução da Assembleia da República; já em Castelo Branco ainda decorrem as intervenções do Programa Polis na cidade.
O mundo estava em perfeita ebulição com os acontecimentos que apareciam todos os dias nos jornais e nos entravam em casa pela televisão. No entanto, o acontecimento que aqui quero destacar é muito pessoal porque, sem que nada o fizesse prever, 2004 ficou-me marcado como o ano em que comecei a olhar para os jornais e para o jornalismo de outra perspectiva. Tudo porque um professor se lembrou de me desafiar a escrever uma notícia para o jornal da escola sobre uma visita de estudo que havíamos realizado. Mal esse professor imaginava que tinha despertado uma curiosidade imensa sobre o universo dos media e do jornalismo numa criança de apenas 11 anos. Passados 20, é difícil, neste exercício de memória, recordar o que mais me terá motivado naquela idade, mas arrisco dizer que terá sido a função mais basilar do jornalismo: contar estórias e dá-las a conhecer.
Foi o início daquilo que se veio a materializar como um caminho de experimentação em dois jornais escolares de Castelo Branco: primeiro no Gazeta Escolar, da Escola João Roiz, e mais tarde no histórico Dois Pontos, do Liceu Nuno Álvares.
Poder-se-á questionar que actividade teria uma criança (à época), para hoje (20 anos depois) estar a falar numa espécie de percurso consolidado? e que conhecimentos teria para o pôr em prática? O caminho foi possível porque, primeiro, fui rapidamente integrado pelos professores responsáveis de ambos os jornais na redacção destes, onde, além de redactor, editava, paginava, fotografava e estava inserido em todo o processo de decisão editorial. Segundo, esses professores, informalmente, ensinaram-me as bases de escrita e das regras jornalísticas, mas também de paginação, entre outros aspectos. Um exemplo do papel que bons professores podem vir a ter na vida dos seus alunos, mas também dos resultados que a educação informal pode originar. Praticamente todos estes docentes nunca haviam sido formalmente meus professores na sala de aula, mas com eles aprendi muito. Tanto que é impossível quantificar. Foram eles: Carlos Gonçalves, Luísa Fernandes, Liliana Gondar, José Martins, Filomena Narciso, Cecília Botelho e Agnelo Quelhas (da Escola João Roiz) e Maria João Damas e Cristina Santos (da Escola Nuno Álvares).
Todos foram peças imprescindíveis que marcaram o início desta jornada a quem volto a agradecer publicamente. Já o havia feito há 10 anos, a propósito da edição do meu primeiro livro — Jaime Lourenço: 10 Anos em Retrospectiva — que reúne os principais trabalhos que tinha produzido e publicado nessa primeira década de trabalho com jornais.
Mas, se hoje há uma orientação para apostar em políticas de literacia mediática e educação para os media em contexto escolar, serve este caso pessoal para mostrar como trabalhar os jornais e o jornalismo em momentos formais e informais na escola pode trazer frutos e capacitar os estudantes para melhor compreenderem o ecossistema mediático em que vivem.
Aliás, recordemos que em Castelo Branco foi desenvolvido um projecto pioneiro e premiado internacionalmente de produção de jornais escolares (onde, salvo erro, todas as escolas do distrito produziam o seu próprio jornal escolar). Em 2010, escrevi que este projecto “visava contribuir para que os alunos se tornassem progressivamente descodificadores críticos de mensagens media e produtores reflexivos da mensagem media”. 14 anos depois, o mundo pode ter mudado, mas os pressupostos são mais actuais que nunca.
Contudo, infelizmente, fruto de políticas educativas, estes títulos, exemplos ímpares de jornais escolares na Beira Baixa, viram o seu fim, incluindo o histórico Dois Pontos com mais de três décadas de actividade ininterrupta.
Este foi apenas o início da caminhada. Com os jornais escolares, vieram os jornais de Castelo Branco — mantendo a colaboração com o Reconquista ainda hoje —, as revistas especializadas e a televisão.
Mais do que a actividade jornalística propriamente dita, procurei sempre reflectir sobre ela, fosse com o olhar atento e curioso em criança, fosse através da investigação académica que procurei levar a cabo nos últimos anos e que mantenho.
Hoje, a postura é naturalmente outra, tentando passar a curiosidade e a necessidade que a sociedade tem de um jornalismo robusto e sério aos alunos da Licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa, onde dou aulas. Procurando sempre honrar aqueles (professores e jornalistas) que tanto me ensinaram e contribuíram para o profissional e cidadão que sou.
Passaram 20 anos sempre a olhar para o jornalismo, essa actividade que tem a missão mais nobre na sociedade democrática. Foram várias as perspectivas e os ângulos de observação, contemplação e, por vezes, inquietação. Podemos resumir os primeiros 10 anos em experimentação, procura e desafio, e os últimos 10 em prática, reflexão e questionamento.
Não sei o que o futuro reserva, mas num exercício de previsão, esta preocupação com os media, o seu estudo e a sua prática irão continuar a interrogar-me e a levar-me, na medida do possível, a construir algum pensamento sobre o jornalismo dos nossos dias. E não nos esqueçamos: um bom professor faz a diferença na nossa vida.
*Professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa
Por opção do autor, este texto não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.
Duas décadas de jornais e jornalismo
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03.05.2024
2004 foi um ano carregado de grandes acontecimentos no panorama internacional e nacional: os Estados Unidos admitem que o Iraque não possuía armas de destruição massiva (motivo que deu origem a mais um conflito armado de grande escala), ocorre um atentado terrorista em Madrid, um tsunami provoca uma destruição de enormes proporções no sudeste asiático, o Facebook é criado; e por cá celebra-se o futebol com a Selecção Nacional a chegar à final do Euro enquanto cresce uma crise política com a dissolução da Assembleia da República; já em Castelo Branco ainda decorrem as intervenções do Programa Polis na cidade.
O mundo estava em perfeita ebulição com os acontecimentos que apareciam todos os dias nos jornais e nos entravam em casa pela televisão. No entanto, o acontecimento que aqui quero destacar é muito pessoal porque, sem que nada o fizesse prever, 2004 ficou-me marcado como o ano em que comecei a olhar para os jornais e para o jornalismo de outra perspectiva. Tudo porque um professor se lembrou de me desafiar a escrever uma notícia para o jornal da escola sobre uma visita de estudo que havíamos realizado. Mal esse professor imaginava que tinha despertado uma curiosidade imensa sobre o universo dos media e do jornalismo numa criança de apenas 11 anos. Passados 20, é difícil, neste exercício de memória, recordar o que mais me terá motivado naquela idade, mas arrisco dizer que terá sido a função mais basilar do jornalismo: contar estórias e dá-las a conhecer.
Foi o início........
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