Nos últimos dias, entre o final de abril e o início de maio, testemunhamos a situação dramática vivida no Rio Grande do Sul devido às intensas chuvas que bateram recordes históricos naquela região. A combinação da chegada de frentes frias com um forte bloqueio atmosférico na Região Sudeste concentrou grandes volumes de precipitação e resultou em extensos alagamentos, causando transtornos e perdas irreparáveis com a morte de dezenas de pessoas.

Fenômeno parecido foi observado no ano passado, também com consequências sérias, ainda que em menor escala do que as que estamos vendo em 2024. Alguns chamaram de prenúncio, porém, os cientistas deram o nome certo: análise e previsão. Um aviso com base em evidências, mas que ninguém escutou.

Não é de hoje que cientistas alertam: o rápido aquecimento do planeta no último século aumenta a frequência e a intensidade de eventos meteorológicos extremos. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) divulga com frequência relatórios sucintos para tomadores de decisões, que demandam pouco esforço de leitura desses agentes para compreender o presente e se preparar para o futuro. O último relatório de 2023 reforça as necessidades de adaptação rápida e prevê o incremento da pluviosidade na região em que o Rio Grande do Sul está localizado. A ocorrência do El Niño, que é o aquecimento acima da média das águas superficiais do Oceano Pacífico, também intensificou a circulação atmosférica e aumentou a pluviosidade no Sul do Brasil. A mudança do uso da terra, com perdas crescentes de áreas naturais e ocupação com atividades onde não deveriam estar presentes, é outro componente que expõe a população, o ambiente e as atividades econômicas a um maior risco. Paralelamente, em termos de políticas públicas, assistimos ao desmonte recente das estruturas ambientais públicas, com afrouxamento de leis, subfinanciamento, redução do corpo técnico e aumento da atividade predatória.

Some-se a isso a disseminação de fake news, em um verdadeiro negacionismo ambiental, protagonizada por agentes políticos, que embasam suas decisões nesse tipo de (des)informação, diminuindo nossa capacidade de intervenção e resposta aos desastres ambientais. Todos esses elementos combinados causam perdas irreparáveis, como vemos novamente nos últimos dias no Rio Grande do Sul, uma tragédia desta vez ainda maior, levando vidas, destruindo famílias, arrasando cidades.

Mais uma vez a sociedade brasileira se mobiliza e se solidariza, mesmo com a população cansada após anos de pandemia, crises econômicas e o bolsonarismo devastador. São os mais pobres que pagam a maior conta, mas as consequências serão cada vez maiores e pagaremos todos o preço da irresponsabilidade dos que não tomaram as decisões corretas.

Cientistas brasileiros já produziram estudos nestes últimos anos em que apontam que as mudanças climáticas no Rio Grande do Sul se traduzem no aumento da frequência das chuvas intensas e em seu volume, entre outras alterações (exemplos: 1, 2, 3 e 4). Apesar disso, inúmeros produtores rurais locais parecem não estar preocupados com essas previsões, o que demonstra a necessidade de maior educação e conscientização. Embora pesquisa similar não tenha sido feita com políticos, provavelmente o resultado seria muito parecido.

Não se pode justificar que esse tipo de conhecimento científico está preso nas produções acadêmicas e dentro das universidades, pois o assunto tem sido tratado com grande frequência na mídia e em audiências públicas de casas legislativas, com o constante alerta de cientistas. Falta a governantes, empresariado, banqueiros e agentes políticos transporem o belo discurso sobre a importância do meio ambiente para uma coalizão que realmente se transforme em ações concretas entre estados e municípios e que realmente nos conduzam a uma adaptação segura às novas condições do planeta.

Já passou da hora de lançarmos um programa amplo que contemple políticas de prevenção a desastres naturais, assim como temos sugerido para a prevenção de doenças emergentes. Por meio de estudos, planos, projetos que já existem em nossas universidades e institutos de pesquisa é possível criar processos de drenagem, contenção de encostas, reassentamento de famílias que residam em áreas de risco, além de estruturar equipes em nível nacional com preparo, insumos e equipamentos para atuarem em situações emergenciais. Os recursos devem vir de diversas fontes, fora dos limites do marco fiscal, incluindo o capital privado.

O exemplo desta semana no Rio Grande do Sul, assim como tantos outros nos últimos anos, deve servir para uma real mudança de atitude em nosso país. É necessário aliar a gestão pública e a Ciência para garantir qualidade de vida e segurança das pessoas e do ambiente. É fundamental que as cidades, os estados e a União proporcionem as adaptações necessárias às novas condições climáticas, tanto no planejamento do território e nas atividades econômicas, como para enfrentamento e resposta aos eventos extremos. O negacionismo climático propalado por pessoas irresponsáveis e ignorantes no assunto apenas produz mortes, degradação ambiental e perdas econômicas. Curiosamente, ao longo da História vimos inúmeros exemplos de governantes que recorriam a "feiticeiros" e "adivinhos" para interpretar sinais e sonhos, para se preparar para o futuro. Hoje temos uma fonte confiável para isso: é hora de escutar a Ciência e mudar nosso rumo para um futuro mais seguro.

* com a colaboração de Décio Semensatto

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Ouvir a ciência para um futuro climático seguro

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07.05.2024

Nos últimos dias, entre o final de abril e o início de maio, testemunhamos a situação dramática vivida no Rio Grande do Sul devido às intensas chuvas que bateram recordes históricos naquela região. A combinação da chegada de frentes frias com um forte bloqueio atmosférico na Região Sudeste concentrou grandes volumes de precipitação e resultou em extensos alagamentos, causando transtornos e perdas irreparáveis com a morte de dezenas de pessoas.

Fenômeno parecido foi observado no ano passado, também com consequências sérias, ainda que em menor escala do que as que estamos vendo em 2024. Alguns chamaram de prenúncio, porém, os cientistas deram o nome certo: análise e previsão. Um aviso com base em evidências, mas que ninguém escutou.

Não é de hoje que cientistas alertam: o rápido aquecimento do planeta no último século aumenta a frequência e a intensidade de eventos meteorológicos extremos. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) divulga com frequência relatórios sucintos para tomadores de decisões, que demandam pouco esforço de leitura desses agentes para compreender o presente e se preparar para o futuro. O último relatório de 2023 reforça as necessidades de adaptação rápida e prevê o incremento da pluviosidade na região em que o Rio Grande do Sul está localizado. A ocorrência do El Niño, que é o aquecimento acima da média das águas superficiais do Oceano Pacífico, também intensificou a circulação atmosférica e aumentou a pluviosidade no Sul do Brasil. A mudança do uso da terra, com perdas crescentes de áreas naturais e ocupação com atividades onde não deveriam estar presentes, é outro componente que expõe a população, o ambiente e as atividades econômicas a um........

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