Auschwitz não serviu para nada. A civilização segue o seu caminho de involução. Ensino há 35 anos consecutivos e nunca senti a escola tão desprovida de sentido como agora. Como é possível ensinar o currículo obrigatório esquecendo as atrocidades do mundo à nossa volta? Quando o mundo em que vivemos atravessa, mais ou menos de forma generalizada, um processo de hipnose coletiva e o vizinho da porta ao lado pode, a qualquer momento, transformar-se num fundamentalista de qualquer espécie, o que nos resta?

Em nome da memória, adapto, transformo, adequo o currículo da disciplina de Português sempre que posso (relembro que o currículo do ensino secundário quase não contempla a temática do Holocausto) porque a memória desta atrocidade integra, para sempre, a cultura do Ocidente. E quando os alunos nos chegam à escola e à nossa sala de aula com a palavra “horror” gravado nos olhos televisivos, temos de relembrar a esterilização massiva, a espoliação dos direitos fundameneis, as valas comuns, entre tantas monstruosidades. Mas não chega.

Alguns alunos, perante a barbárie dos últimos acontecimentos que envolvem Israel, a Palestina e o mundo, perguntam: Stora, como é possível isto estar a acontecer? Outros nem conseguem aperceber-se do que se passa no mundo, distraídos que vivem com a ilusão da imagem que as redes sociais reforçam a cada dia. Alguns, poucos, pedem-me que lhes explique o que se está passar. Aí, então, surge a grande dificuldade de todos nós: como explicar este (e outros conflitos) sem tomar qualquer partido?

Fazendo um esforço, procuro responder-lhes com o recurso e o argumento mais importante de todos: o AMOR. A escola dos afetos, do humanismo e dos valores (não de futuro mas de agora) é, para muitos, uma miragem. Reinventar a escola – frase banal e repetitiva – e o que nela se ensina consiste na maior urgência dos nossos tempos. Quanta vezes as questões de luta pelo poder não começam mesmo ali à nossa frente, na sala de aula? Os ambientes educativos estão repletos de violência (muitas vezes velada, de desinteresse pelo “outro”, de apatia, de uma comunicação deturpada pelas tecnologias viciantes, de total desconexão com o real sentido das nossas vidas e, neste contexto, a escola tem vindo a perder, a meu ver, a sua missão principal: Humanizar.

Compete a nós, professores, fazer o apelo da memória junto dos nossos alunos como um grande alerta para estarmos atentos. A grande questão que temos de colocar nas escolas é como foi possível que o extermínio de judeus, ciganos, deficientes, homossexuais e dissidente políticos tenha ocorrido há menos de cem anos. Não sei se há História mais difícil de contar nem aulas mais difíceis de dar. Contudo, sei que perante a necessidade de uma nova rutura humanística, o papel dos professores nunca foi tão importante. A grande verdade, nua e crua, é que o holocausto não foi ontem. Ele continua aí… E a escola, nas suas diferentes abordagens ao conhecimento, deve contribuir para preservar a memória de um acontecimento sem precedentes. Como temos assistido, o nazismo – que como alguns outros ismos representa fanatismo e cegueira – não foi (e infelizmente não será) a última tentativa de extermínio da nossa História. Os riscos de outros potenciais extermínios deveriam estar na ordem do dia e ser o primeiro ponto na agenda de todos os encontros, reuniões, seminários, aulas… especialmente em tempos onde o medo impera. E o MEDO, venha ele de que forma vier, é um meio de inação e de grande poder.

O mundo está cada vez mais a enveredar por regimes ditatoriais, algumas vezes velados, que ameaçam destruir o progresso civilizacional conseguido até aqui. Considero serem neste momento as grandes motivações da Humanidade (que vê atentamente através do ecrã a perversidade moral e a crueza da guerra – como se de um qualquer filme de ação se tratasse) os temas prementes a debater na Escola Pública. E nesta matéria, as aulas de Cidadania ou de Orientação Escolar são francamente insuficientes para que os alunos fiquem a par do que está a acontecer no mundo real.

Há coisas em que acredito e há outras em que ainda quero acreditar. E uma dessas coisas é que haverá um amanhã em que o Homem, fugindo a esta praga crescente de precariedade cultural e espiritual em que vive – como Nietsche bem afirmou – estará para além do Bem e do Mal. Sem a precaução exigida e da forma como os acontecimentos se sucedem, um dia destes daremos por nós numa situação em que só mostrando o nosso número é que receberemos a sopa e algum pão… A diáspora e o sofrimento dos povos vêm de longe. Porém, ela agora entra-nos pela casa adentro impedindo esquecer que o único crime cometido por estes povos foi serem diferentes.

O grande drama da maioria dos nossos alunos e talvez dos professores também é já não acreditarem em coisa nenhuma. E quando já não se acredita em quase nada, aceita quase tudo. Por tudo isto, a escola tem de ensinar a quem a frequenta que a democracia é o pior dos regimes excetuando todos os outros e compete aos professores (evitando o perigo de alguns paralelismos e comparações) inscrever na mente e na alma dos alunos – para a posteridade – os acontecimentos desumanos de violência extrema que marcam os nossos dias. Se, humanamente é impossível compreender o holocausto (por vezes, chega a parecer que há uma tentativa de branqueamento do mesmo nos currículos), é igualmente inverosímil aceitar o que se passa no mundo neste momento. Todos os professores possuem o dever da Memória. O respeito pelo “outro” e a empatia devem ser temáticas transversais a todas as disciplinas. Estimule-se o Humanismo nas escolas, ensine-se a Paz!

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Ensine-se aos alunos a paz. O papel da escola, aos olhos de uma professora, em tempos de guerra

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03.11.2023

Auschwitz não serviu para nada. A civilização segue o seu caminho de involução. Ensino há 35 anos consecutivos e nunca senti a escola tão desprovida de sentido como agora. Como é possível ensinar o currículo obrigatório esquecendo as atrocidades do mundo à nossa volta? Quando o mundo em que vivemos atravessa, mais ou menos de forma generalizada, um processo de hipnose coletiva e o vizinho da porta ao lado pode, a qualquer momento, transformar-se num fundamentalista de qualquer espécie, o que nos resta?

Em nome da memória, adapto, transformo, adequo o currículo da disciplina de Português sempre que posso (relembro que o currículo do ensino secundário quase não contempla a temática do Holocausto) porque a memória desta atrocidade integra, para sempre, a cultura do Ocidente. E quando os alunos nos chegam à escola e à nossa sala de aula com a palavra “horror” gravado nos olhos televisivos, temos de relembrar a esterilização massiva, a espoliação dos direitos fundameneis, as valas comuns, entre tantas monstruosidades. Mas não chega.

Alguns alunos, perante a barbárie dos últimos acontecimentos que envolvem Israel, a Palestina e o mundo, perguntam: Stora, como é possível isto estar a acontecer? Outros nem conseguem aperceber-se do que se passa no mundo, distraídos que vivem com a ilusão da imagem que as redes sociais reforçam a cada dia. Alguns, poucos, pedem-me que lhes explique o que se está passar. Aí, então, surge a grande dificuldade de todos nós: como explicar este (e outros conflitos)........

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