Um dos principais riscos das democracias liberais ocidentais é o facto de os partidos poderem vencer eleições com um número muito diminuto de votos. E quanto mais aumenta a abstenção, mais diminuto ele é. Em Portugal, por exemplo, não mais do que um milhão e meio de portugueses podem decidir, tranquilamente, quem vai governar. Por essa razão, os partidos tendem a concentrar as suas atenções em nichos seguros do eleitorado, propondo políticas que interessam, não necessariamente ao coletivo, mas a determinados setores que votam militantemente. Sabemos que o interesse de uma camada específica da população pode entrar em conflito com o interesse coletivo, como se verificou no referendo do Brexit, decidido por um eleitorado envelhecido, rural e instalado. Isto acaba por alienar as restantes camadas da população, muitas vezes as mais dinâmicas, e causa uma entorse ao próprio desenvolvimento económico dos países, provocando crescente descontentamento com a democracia e originando números cada vez maiores de abstenção. O que afunila o sistema: os nichos eleitorais para os quais os partidos trabalham ficam ainda mais pequenos, o que, por sua vez, determina que cada vez menos eleitores possam decidir quem governa. Ora, não se sabe bem em que estudos científicos esta teoria está fundamentada, mas a verdade é que se convencionou que os pensionistas votam muito e que, durante anos, por terem um perfil mais conservador, votavam, preferencialmente, à direita. Essa “regra” não escrita foi dinamitada por um primeiro-ministro que não pensou nisso: ao cortar nas pensões, Passos Coelho alienou, durante muito tempo, esse voto precioso – como, antes dele, José Sócrates havia alienado o voto precioso dos professores, no PS. As políticas de um e de outro talvez fossem necessárias, mas rebentaram com clientelas seguras. No congresso do PSD, no sábado, Luís Montenegro deu um sinal inequívoco de que fará o que for preciso para recuperar, pelo menos, parte do eleitorado mais… sénior. A sua promessa de que o PSD não cortará um cêntimo nas pensões e de que os beneficiários do complemento solidário para Idosos terão rendimento mínimo de 820 euros é bem a prova disto. De caminho, pisca o olho aos professores, outro setor da população que Passos Coelho tinha devolvido ao PS, em 2015, depois do congelamento das carreiras. As clientelas eleitorais definem, assim, as políticas públicas, retendo fundos que podiam ser aplicados noutras opções, em prejuízo de um projeto reformista, “fora da caixa”, que faça o País sair da cepa torta. Com estas promessas, fica provado que PS e PSD são farinha do mesmo saco. Com total previsibilidade, os candidatos que disputam a liderança socialista, ainda antes da campanha eleitoral nacional, já se atropelam no leilão de medidas semelhantes, mesmo tendo em conta que ambos pertencem (ou pertenceram) ao núcleo duro do poder que governou o País, nos últimos oito anos. Se um milhão e meio de eleitores podem definir quem governa, o único objetivo é concentrar esforços onde podemos ir buscar esses votos. Isto é a “diabetes” da democracia liberal: sem ninguém dar conta, a doença está instalada e afeta todos os órgãos, provocando sintomas que, sem atinarmos com o diagnóstico da origem, pretendemos tratar: descontentamento, polarização, crispação e populismo.

Grande momento do congresso do PSD foi o da aparição de Cavaco Silva – e de outras velhas glórias – a apadrinhar Luís Montenegro. Fica afastada a hipótese de qualquer convulsão de última hora que possa colocar em causa a liderança de Montenegro antes das eleições. Mas o protagonismo de Cavaco Silva faz mais mal do que bem às pretensões de Montenegro. É verdade que a sua presença provoca nostalgia num certo eleitorado mais idoso – onde, lá está, existem votos que é preciso recuperar –, mas o ex-PR deixou o cargo com uma apreciação global (segundo todos os estudos de opinião) francamente negativa. A sua simples presença nos ecrãs, que galvaniza os fiéis, justa ou injustamente repele os restantes. E ele apareceu nos ecrãs ao lado de um “enfiado” Luís Montenegro, como aquele tio velhote e inconveniente que aparece no jantar de família, convencido do seu estatuto para dizer o que lhe apetece. Seja como for, Montenegro sai reforçado de um congresso que era para não ter história – se não fosse a crise política –, o que lhe dá imenso jeito. Resta agora ver como vai passar o teste da formação das listas de deputados…

QOSHE - A diabetes da democracia - Filipe Luís
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A diabetes da democracia

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30.11.2023

Um dos principais riscos das democracias liberais ocidentais é o facto de os partidos poderem vencer eleições com um número muito diminuto de votos. E quanto mais aumenta a abstenção, mais diminuto ele é. Em Portugal, por exemplo, não mais do que um milhão e meio de portugueses podem decidir, tranquilamente, quem vai governar. Por essa razão, os partidos tendem a concentrar as suas atenções em nichos seguros do eleitorado, propondo políticas que interessam, não necessariamente ao coletivo, mas a determinados setores que votam militantemente. Sabemos que o interesse de uma camada específica da população pode entrar em conflito com o interesse coletivo, como se verificou no referendo do Brexit, decidido por um eleitorado envelhecido, rural e instalado. Isto acaba por alienar as restantes camadas da população, muitas vezes as mais dinâmicas, e causa uma entorse ao próprio desenvolvimento económico dos países, provocando crescente descontentamento com a democracia e originando números cada vez maiores de abstenção. O que afunila o sistema: os nichos eleitorais para os quais os partidos trabalham ficam ainda........

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