É uma das frases da campanha, sobretudo desde que Pedro Abrunhosa acusou o Bloco de Esquerda de se apropriar dela, nos cartazes, com ganhos de publicidade para ambas as partes. “Fazer o que nunca foi feito”, embora na versão musical haja uma ligeira diferença: “O que ainda não foi feito.” Para uma parte do que nos interessa aqui, a viabilização de governos minoritários, a frase do cartaz não serve totalmente: não foi feito em 2015, no plano nacional, e não foi feito em 2020, nos Açores, mas foi feito noutras ocasiões, como veremos. Nestes dois atos eleitorais recentes, ambos os partidos classificados em segundo lugar nas urnas manobraram, nos respetivos parlamentos, para impedir o vencedor de governar, ficando eles no seu lugar. Mas tanto a frase do cartaz como a versão Abrunhosa dão, agora sim, para descrever a revelação de Pedro Nuno Santos, no debate com Luís Montenegro: ele admite fazer o que ainda não foi feito, pelo PS, e viabilizar um governo minoritário (ou de maioria relativa) da direita, neste caso, da AD. Nunca, na história da democracia portuguesa, os socialistas viabilizaram um governo do PSD. Nem em 1985, com Cavaco Silva, nem em 2015, com Pedro Passos Coelho. De ambas as vezes, o PS apresentou moções de rejeição. No primeiro caso, a abstenção do então poderoso PRD (45 deputados, em 250) garantiu a sobrevivência de Cavaco, que, ironicamente, viria a cair, dois anos depois, na sequência de uma moção de censura apresentada pelos mesmos renovadores, mas caucionada pelo PS (abrindo lugar à primeira maioria absoluta do PSD, na sequência das respetivas eleições antecipadas). Já em 2015, a moção de rejeição socialista passou, com os votos da esquerda, e Passos caiu. O contrário já não acontece: o PSD não apresentou nem votou favoravelmente qualquer moção de rejeição, nem em 1976 (governo minoritário de Mário Soares), nem em 1995 (com Guterres), nem em 1999 (no segundo governo do atual secretário-geral da ONU), nem em 2009 (no segundo governo de Sócrates). Significa isto que, se a AD ganhar e Pedro Nuno Santos cumprir a sua palavra, o PS estará a fazer História – e logo pela mão do líder mais à esquerda de sempre, no partido!…

Esta circunstância demonstra bem como a política mudou, em Portugal. E, malgrado a polarização e a acrimónia registada neste debate em concreto, os dois partidos centrais do sistema serão capazes de, mesmo que instintivamente, concertar estratégias para arredar a ameaça de uma terceira força emergente. O espectro do Chega é a única razão pela qual Pedro Nuno Santos faz aquela declaração. E isto só é possível porque, antes dele, Luís Montenegro rejeitara, liminar e convincentemente, qualquer acordo com André Ventura. O mais interessante, nestes jogos de alta política, é o facto de que, mantendo e até acentuando divergências mais vincadas do que no passado, PS e PSD, sem sequer combinarem, acomodam estratégias contra aquela ameaça. E isto pode fornecer-nos pistas para o futuro próximo da democracia, em Portugal. Esta declaração histórica de Pedro Nuno, a mais importante de todo o debate, prova que o líder do PS está à altura da inteligência estratégica demonstrada por Montenegro: André Ventura, que ameaçava tornar-se o presente-ausente de todos os debates em que não estivesse, em particular no confronto entre PS e PSD, ficou totalmente de fora da discussão de segunda-feira à noite e nunca, sequer, foi referido. Foi como se não existisse. A sua entrevista, duas horas antes, à CMTV, talvez agendada para desviar algumas atenções mediáticas, não foi citada por ninguém. Por uma vez, o Chega atingiu o patamar da irrelevância.

Pergunta-se agora: por que razão Montenegro não ofereceu reciprocidade ao PS? Porque não diz ele se, em situação análoga, viabiliza, ou não, um governo socialista de maioria relativa? Porque não pode. E não pode, por três motivos: primeiro, ao contrário de Pedro Nuno Santos, que terá perdido as esperanças sobre uma maioria de esquerda, Luís Montenegro poderá ter à disposição uma maioria de direita – mesmo que o PS ganhe! E essa circunstância fornece-lhe o segundo motivo: num caso destes, ele sabe que pode não conseguir segurar o partido, um PSD que dificilmente resistirá à tentação de fazer o acordo que ele recusa. Nesse caso, Montenegro sai de cena – algo que também não pode admitir, neste momento. Em terceiro lugar, se ele admitir, desde já, viabilizar um governo do PS, perderá votos preciosos para o Chega, que capitalizará essa… “capitulação”. A dúvida razoável que se coloca, neste momento, é a de saber se o PSD e os seus barões já perceberam o que Montenegro parece ter captado: que a sobrevivência do partido depende da marginalização total do Chega. Nem que para isso tenha de citar Churchill: “Se tivesse de me aliar ao próprio diabo para derrotar Hitler, fá-lo-ia.”

Golpe de vista

A Madeira e o caruncho

O Ministério Público contesta o tempo de detenção, para interrogatório, dos arguidos do caso da Madeira, e também a decisão final do juiz de instrução, que não viu indícios de crime, quando outros cinco juízes já tinham validado esses indícios. Primeiro, muitas demoras têm origem em processos mal-acabados (escutas mal transcritas, por exemplo) pelo MP. Não sabemos se é o caso. Por outro lado, o MP omite que os tais cinco juízes que viram indícios de crime não tinham tido contacto com o contraditório apresentado pelas defesas.

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Fazer o que nunca foi feito

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22.02.2024

É uma das frases da campanha, sobretudo desde que Pedro Abrunhosa acusou o Bloco de Esquerda de se apropriar dela, nos cartazes, com ganhos de publicidade para ambas as partes. “Fazer o que nunca foi feito”, embora na versão musical haja uma ligeira diferença: “O que ainda não foi feito.” Para uma parte do que nos interessa aqui, a viabilização de governos minoritários, a frase do cartaz não serve totalmente: não foi feito em 2015, no plano nacional, e não foi feito em 2020, nos Açores, mas foi feito noutras ocasiões, como veremos. Nestes dois atos eleitorais recentes, ambos os partidos classificados em segundo lugar nas urnas manobraram, nos respetivos parlamentos, para impedir o vencedor de governar, ficando eles no seu lugar. Mas tanto a frase do cartaz como a versão Abrunhosa dão, agora sim, para descrever a revelação de Pedro Nuno Santos, no debate com Luís Montenegro: ele admite fazer o que ainda não foi feito, pelo PS, e viabilizar um governo minoritário (ou de maioria relativa) da direita, neste caso, da AD. Nunca, na história da democracia portuguesa, os socialistas viabilizaram um governo do PSD. Nem em 1985, com Cavaco Silva, nem em 2015, com Pedro Passos Coelho. De ambas as vezes, o PS apresentou moções de rejeição. No primeiro caso, a abstenção do então poderoso PRD (45 deputados, em 250) garantiu a sobrevivência de Cavaco, que, ironicamente, viria a cair, dois anos........

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