Um dos maiores equívocos das análises sobre o crescimento do Chega é o de continuar a sustentar que isso se deve ao “voto de protesto”. Estamos a falar de mais de um milhão e 100 mil votos. Neste patamar, a votação do Chega já não é só protesto. As pessoas encontraram no Chega um projeto de mudança e identificaram esperança. Cerca de 800 mil cidadãos, antes abstencionistas, levantaram o rabo do sofá e foram votar. Um grande contingente deles nunca o tinha feito. Com mais de um milhão de eleitores, é inevitável concluir que há aqui uma boa parte do velho eleitorado central e flutuante, que oscilava, anteriormente, entre PS e PSD. Hoje, esse mesmo eleitorado está disponível para oscilar entre PS, PSD e Chega. Esta nova base de apoio pode obrigar o Chega a não exagerar no radicalismo, de forma a não assustar estes eleitores que (como reconhece o próprio Pedro Nuno Santos) podem vir de áreas moderadas. O líder do PS percebeu tudo quando afirmou que “não há um milhão de racistas, fascistas ou xenófobos”.

Numa análise relativamente fina dos resultados, verificamos que nos distritos, concelhos e freguesias onde a abstenção mais baixou, o Chega cresceu mais. E a tão propalada “geração mais bem preparada de sempre” também parece estar a ser muito penetrável pelas mensagens de Ventura, o que nos faz refletir sobre a verdadeira natureza dessa tão grande “preparação” na literacia cívica e crítica de novas gerações alheadas da política, bem como na falência do ensino da História e das disciplinas humanísticas.

Outro dado relevante tem que ver com o descontentamento localizado, servindo de exemplo eloquente o Algarve. Uma das regiões que, comparativamente, mais contribui para o crescimento do PIB, via atividade turística, é uma das mais abandonadas do País. Abaixo de Sines, há um dermatologista… em part-time. A primeira pedra do novo hospital do Algarve já foi lançada, pelo menos, quatro vezes. Centros de saúde e maternidades fecham a eito e serviços encerram com base em critérios inexplicáveis. Não há rede de transportes dignas desse nome. A A22 é a única via verdadeiramente transitável que atravessa a região, mas décadas de reivindicações para acabar com as portagens foram ignoradas por sucessivos governos. Atravessa-se a fronteira e vê-se a diferença. E os algarvios, empobrecidos, tornados criados dos residentes estrangeiros que fizeram disparar o preço da habitação, vivem com o credo na boca do emprego sazonal. E os que encontraram um pé de meia no alojamento local sentem-se, agora, ameaçados pelas políticas hostis do Governo.

A direita portuguesa vai ter de lidar com o Chega, parceiro incontornável de futuras soluções. Mas, se o PS pensa que o problema é da direita, está bem enganado. Se o populismo crescer a este ritmo, sociais-democratas e socialistas serão devorados pela mesma vertigem: o que move os eleitores votantes do Chega, que até se apresentou ao eleitorado com demagógicas promessas de esquerda, não é a ideologia. Se pegarmos numa lupa e observarmos a composição da nova bancada do Chega, constatamos que este partido conseguiu ir ao tecido social. Esqueçam as listas de deputados dos grandes partidos, compostas por licenciados, juristas, economistas ou académicos (com o PCP a enfeitar as suas com alguns operários): o Chega tem gente de várias profissões, do professor à designer gráfica, do empresário médio ao pequeno comerciante. Sendo uma bancada menos preparada, nalguns casos boçal e trauliteira, noutros ingénua e cheia de boa vontade, é também uma representação do País e da fraqueza das suas competências. É verdade que já houve terceiras forças políticas pujantes – o PRD, em 1985, obteve 17,9% dos votos e o PCP, em 1979, tinha obtido 18,8%, embora isso não contasse para nada, porque a AD teve maioria absoluta. Mas o Chega já conseguiu o que não almejou nenhum outro 3.º partido – nem sequer um grande, como o PSD, nos tempos áureos do cavaquismo: uma implantação nacional uniforme, do Continente às ilhas, do Sul ao Norte e do Litoral ao Interior. E, já vai ficando demonstrado, nunca nenhuma terceira força conseguiu tão grande penetração interclassista e intergeracional. O Chega tem mais de 20% a sul do Tejo, em todos os distritos (Santarém, Portalegre, Setúbal, Évora, Beja e Faro), e, de um modo geral, anda na casa dos 18% a norte desse rio.

Pensando bem, e cerrando os dentes, o melhor que podia acontecer era o Chega ter um choque de realidade, no poder. O ilusionismo perde o encanto no momento em que descobrimos o truque.

Golpe de vista

Sucesso não sectário

A pequena vitória do Livre é a vitória da moderação. Rui Tavares, que fez uma campanha sem bombos atrás e sem atacar ninguém, provou que a esquerda também pode emendar um dos seus piores defeitos: o sectarismo. Uma lição que deveria ser aprendida por partidos maiores, a começar pelo PS. O cosmopolitismo e a civilidade fazem o seu caminho, por entre a selva da polarização cega.

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Isto já não é só protesto

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13.03.2024

Um dos maiores equívocos das análises sobre o crescimento do Chega é o de continuar a sustentar que isso se deve ao “voto de protesto”. Estamos a falar de mais de um milhão e 100 mil votos. Neste patamar, a votação do Chega já não é só protesto. As pessoas encontraram no Chega um projeto de mudança e identificaram esperança. Cerca de 800 mil cidadãos, antes abstencionistas, levantaram o rabo do sofá e foram votar. Um grande contingente deles nunca o tinha feito. Com mais de um milhão de eleitores, é inevitável concluir que há aqui uma boa parte do velho eleitorado central e flutuante, que oscilava, anteriormente, entre PS e PSD. Hoje, esse mesmo eleitorado está disponível para oscilar entre PS, PSD e Chega. Esta nova base de apoio pode obrigar o Chega a não exagerar no radicalismo, de forma a não assustar estes eleitores que (como reconhece o próprio Pedro Nuno Santos) podem vir de áreas moderadas. O líder do PS percebeu tudo quando afirmou que “não há um milhão de racistas, fascistas ou xenófobos”.

Numa análise relativamente fina dos resultados, verificamos que nos distritos, concelhos e freguesias onde a abstenção mais baixou, o Chega cresceu mais. E a tão propalada “geração mais bem preparada de sempre” também parece estar a ser muito penetrável pelas........

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