Nas sociedades contemporâneas existem, basicamente, duas formas de obtermos rendimentos do nosso trabalho: através do sistema de mercado ou de acordo com as tabelas remuneratórias pagas pelo Estado, quando o Estado é o nosso interlocutor laboral. Quer num caso, quer no outro, o que recebemos não corresponde a uma avaliação perfeita da nossa valia para a comunidade.

No caso do mercado, o nosso vencimento é o resultado directo das forças da procura e da oferta e do nosso poder negocial (ou da classe profissional a que pertencemos, quando há acordos de negociação colectiva). O que o mercado nos dá em troca do nosso trabalho deriva de uma avaliação que esse sistema económico faz do nosso contributo para a sociedade, mas que sofre de fortes enviesamentos: dá grande relevância ao imediato e ao que parece, subvaloriza o mediato e o que não parece. Metaforicamente, o mercado é míope e infantil. Exemplificando: quando o melhor futebolista do mundo ganha mais do que o melhor médico do mundo, o mercado está-nos a dizer que valoriza mais o futebolista do que o médico. E isso acontece porque o trabalho do futebolista pode ser disseminado por milhões de indivíduos ao mesmo tempo (a visualização dos seus jogos) e tem um retorno imediato (o prazer de o ver jogar), enquanto o médico, tipicamente, está na circunstância de só conseguir ajudar uma pessoa de cada vez, sendo o benefício dessa ajuda, muitas vezes, sentido apenas ao longo do tempo. Porém, é perfeitamente legítimo que consideremos o trabalho do médico mais importante para a vida individual e colectiva do que o trabalho do futebolista. O mercado faz a avaliação inversa. Outro caso clássico: quem é que contribuiu mais para a felicidade humana, Chopin ou Madonna? Se deixarmos os vencimentos de mercado que cada um auferiu falarem, Madonna é infinitamente mais relevante, quanto mais não seja pela época histórica de cada um: Chopin não pôde difundir a sua música pela internet, alcançando milhões, Madonna sim. O mesmo se diga de Van Gogh que, em vida, conseguiu que o mercado (o seu irmão, na verdade) apenas lhe comprasse um quadro, enquanto outros artistas da época enriqueceram e hoje nem o nome lhes sabemos.

Quando passamos para as remunerações pagas pelo Estado, podemos observar outras lógicas (embora a tendência actual seja a de regular os vencimentos pagos pelo Estado pelos vencimentos de mercado e não o oposto). Depois de um debate democrático sobre a valia relativa das profissões e das funções, os Estados podem definir tabelas remuneratórias onde esses méritos estejam reflectidos. Mas também aqui não se encontra a verdade absoluta sobre a valia das funções: o poder relativo de certas classes profissionais, ou os conceitos e preconceitos vigentes na sociedade ditam essas remunerações muito para além de uma avaliação pura (ex: porque paga o Estado tão mais aos professores universitários em comparação com os professores primários, quando a ciência nos diz que o trabalho feito com as crianças é o mais decisivo).

Resta ainda uma dimensão fundamental: a valia do trabalho não remunerado. O trabalho que um pai ou uma mãe têm a cuidar dos filhos é de uma valia social extrema, mas não é remunerado (até prejudica os nossos ganhos laborais). O mesmo se diga de outras tarefas do cuidar informal, que são decisivas para a felicidade, mas de nada valem nos esquemas remuneratórios.

Enfim, o que mais há é um desajuste entre aquilo que se ganha e aquilo que é a nossa valia social. Na maior parte dos casos, somos subavaliados. Para os poucos vencedores desta lotaria da distorção, vem a obscena remuneração, como a daqueles que ganham 400 vezes mais que o comum dos trabalhadores.

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O nosso vencimento não é o nosso valor

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21.11.2023

Nas sociedades contemporâneas existem, basicamente, duas formas de obtermos rendimentos do nosso trabalho: através do sistema de mercado ou de acordo com as tabelas remuneratórias pagas pelo Estado, quando o Estado é o nosso interlocutor laboral. Quer num caso, quer no outro, o que recebemos não corresponde a uma avaliação perfeita da nossa valia para a comunidade.

No caso do mercado, o nosso vencimento é o resultado directo das forças da procura e da oferta e do nosso poder negocial (ou da classe profissional a que pertencemos, quando há acordos de negociação colectiva). O que o mercado nos dá em troca do nosso trabalho deriva de uma avaliação que esse sistema económico faz do nosso contributo para a sociedade, mas que sofre de fortes enviesamentos: dá grande relevância ao imediato e ao que parece, subvaloriza o mediato e o que não parece. Metaforicamente, o mercado é míope e infantil. Exemplificando: quando o melhor futebolista do mundo ganha mais do que o melhor médico do mundo, o mercado está-nos a dizer........

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