Se quisermos proceder a uma contextualização histórico-teológica sobre a forma como o trabalho é visto na Bíblia temos que começar pelo princípio dos tempos.

A verdade é que no livro de Génesis o trabalho parece surgir inicialmente como uma maldição, essencialmente devido ao pecado dos nossos primeiros pais, da sua desobediência e na sequência da expulsão do Éden: “E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” (Génesis 3:17-19). A partir de agora seria necessário trabalhar duramente a fim de poder obter alimento.

Mas também é verdade que a mesma Bíblia exalta repetidamente a dignidade do trabalho, tanto no Antigo Testamento, por exemplo nos livros sapienciais: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (Eclesiastes 9:10). Curiosamente Salomão sublinha aqui uma ética do trabalho, quando diz para não rejeitar trabalho mas também para o realizar segundo as “forças” de cada um, o que exclui tanto o excesso de trabalho de uns – os workaholics – mas também o absentismo e a falta de empenho e brio profissional de outros.

Por outro lado, no Novo Testamento temos a determinação apostólica no sentido de associar o trabalho à dignidade da vida humana: “Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também. Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas vãs. A esses tais, porém, mandamos, e exortamos por nosso Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o seu próprio pão” (2 Tessalonicenses 3:10-12).

Note-se que a exortação não se dirige a quem não pode trabalhar ou não tem trabalho, mas apenas a quem de facto não quer trabalhar. Crê-se que o contexto é o duma ideia que fez escola durante algum tempo na segunda metade do I século, quando se julgava que a Parousia (Segunda Vinda de Cristo) estava iminente, e por isso alguns decidiram que não valia a pena trabalhar nem casar e constituir família.

Séculos depois, já no regime feudal, o trabalho era considerado algo pouco digno e adequado apenas para os escravos e os servos da gleba. Os nobres não trabalhavam, viviam dos rendimentos, mergulhados no ócio, ou dedicavam-se a atividades lúdicas como a caça, os bailes de salão, as relações sociais e os concertos de música.

Porém, Max Weber apresenta um novo sentido atribuído por Lutero ao termo alemão Beruf (vocação). O reformador considerava o exercício profissional como uma vocação divina para viver a fé no mundo. Para ele essa vocação divina não se reduzia apenas à dimensão espiritual exercida por padres ou monges.

Os orientais têm uma visão mais holística: a palavra japonesa Ikigai significa encontrar significado entre talento, paixão, profissão e missão na sociedade. Encara, portanto, o trabalho como algo muito mais ligado à plenitude do ser, no sentido de realização da pessoa humana e da inserção desta na sociedade.

Também vale a pena reflectir na ideia do grande Agostinho da Silva. O filósofo defendia que o homem não tinha sido feito para trabalhar mas para criar. Isto é, não estava destinado a um trabalho rotineiro (em breve serão os robots a fazê-lo!) mas a um trabalho que incluísse alguma função criativa. Se Deus é o Criador, os seres humanos serão pequenos criadores.

Digamos que a ligação entre a fé e o trabalho verifica-se essencialmente em três grandes dimensões. Desde logo na forma de lidar com os lucros. É nesta dimensão pessoal que se percebe a essência da pessoa. Se eles servem para desperdício, luxos, ostentação e desvarios ou para algo mais útil e justo. Uma segunda dimensão é a relacional, e verifica-se na forma como o empresário, patrão ou líder profissional lida com os seus trabalhadores ou subordinados. Se existe uma preocupação com o seu bem-estar e da família, se lhe paga um salário digno, se lhe proporciona condições dignas de trabalho ou não. Finalmente, vem a responsabilidade social da empresa. Nesta dimensão social se verifica se a empresa é um mundo à parte da sociedade ou se se compreende a si mesma como factor de desenvolvimento social.

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A fé tem que ver com a profissão?

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07.02.2024

Se quisermos proceder a uma contextualização histórico-teológica sobre a forma como o trabalho é visto na Bíblia temos que começar pelo princípio dos tempos.

A verdade é que no livro de Génesis o trabalho parece surgir inicialmente como uma maldição, essencialmente devido ao pecado dos nossos primeiros pais, da sua desobediência e na sequência da expulsão do Éden: “E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” (Génesis 3:17-19). A partir de agora seria necessário trabalhar duramente a fim de poder obter alimento.

Mas também é verdade que a mesma Bíblia exalta repetidamente a dignidade do trabalho, tanto no Antigo Testamento, por exemplo nos livros sapienciais: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”........

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