Vivemos tempos de posições políticas muito extremadas em todo o mundo, como se de repente tivéssemos perdido toda a capacidade de moderação, de domínio próprio e do equilíbrio que caracteriza as relações sociais e humanas nas sociedades mais prósperas. Bem sei que as redes sociais – espaços públicos sem qualquer espécie de filtro – potenciam este estado de coisas, mas duvido que essa circunstância explique tudo.

No mundo religioso parece verificar-se também uma tendência para o populismo, a que podemos chamar populismo religioso, como se tem visto abundantemente nas Américas mas também na Ásia. Nos últimos anos temos visto líderes religiosos a cair no mesmo tipo de discursos maniqueístas que animam os populistas políticos de extrema-direita ou extrema-esquerda neste nosso mundo desvairado. Eles caem sobretudo em dois erros crassos.

Um dos sinais mais evidentes é a prática reiterada do exagero, da mentira, da manipulação e daquilo que se convencionou chamar pós-verdade. No meio religioso verifica-se que a fé foi substituída pelo pensamento mágico. Nalguns meios, ter fé significa retirar a Deus a sua soberania, chegando-se ao limite de afirmar que Ele tem que fazer, uma vez que existem promessas bíblicas nesse sentido. Portanto, se Deus diz que vai fazer, e porque não mente nem pode mentir, Ele tem mesmo que cumprir.

Para os populistas religiosos também não há dúvidas nem mistérios nas coisas espirituais. Tudo tem uma resposta clara e pronta na ponta da língua. E se Deus por acaso não responde naquele momento à oração de petição ou intercessão, então é porque a pessoa tem falta de fé ou, pior, tem pecado oculto na sua vida. O mexilhão está sempre tramado. A culpa é sempre sua e não dos religiosos vendedores de banha da cobra…

O problema é que com esta pulsão de pretender roubar a Deus a sua soberania e de apresentar respostas e explicações para tudo e mais um par de botas, o que sucede é que se perde pelo caminho a honestidade de admitir a dúvida, desconhecendo que não há fé sem dúvida. Isto é, a dúvida é profundamente humana e não há que a temer ou dissimular. Temos é que aprender a lidar com ela, de modo a que a fé supere a dúvida que ciclicamente nos sai ao caminho. Neste filme não há super-crentes ou super-cristãos. Todos somos feitos da mesma massa. Negar isso é negar a nossa humanidade.

Mas o problema mais grave será o de considerar o mistério da fé como uma fraqueza inaceitável. Mas, como diz Halik1: “A fé madura é a permanência paciente na noite do mistério”. Já o apóstolo Paulo o exprimia desta forma: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor” (1 Coríntios 13:11-13).

Para Paulo, ser homem na fé (adulto, maduro) é abandonar uma certa infantilidade e passar a compreender que não somos capazes de discernir as coisas de Deus com clareza, uma vez que estamos presos a uma condição humana que por natureza é limitada e finita.

O mais que podemos fazer será ver como que num espelho. Ora, no séc. I os espelhos não eram como hoje, mas sim superfícies de cobre polido onde se reflectia com pouca nitidez o nosso rosto. Por outro lado, o que vemos num espelho não é o rosto mas uma imagem reproduzida do mesmo. A mensagem paulina é que um dia veremos “face a face”, com nitidez total, quando estivermos na eternidade, numa outra dimensão, já não mais presos a limitações humanas, mas na plenitude do divino.

Talvez o problema de fundo seja uma certa dificuldade dos populistas religiosos em admitir que não são eles que estão no controlo. Por isso mesmo Tiago aconselhava os seus contemporâneos: “Eia agora vós, que dizeis: Hoje, ou amanhã, iremos a tal cidade, e lá passaremos um ano, e contrataremos, e ganharemos. Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece. Em lugar do que devíeis dizer: Se o Senhor quiser, e se vivermos, faremos isto ou aquilo. Mas agora vos gloriais em vossas presunções; toda a glória tal como esta é maligna. Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tiago 4:13-17).

Ou seja, a presunção é realmente pecaminosa. Mesmo, ou até especialmente, a dos populistas religiosos.

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Dois erros crassos dos populistas religiosos

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14.02.2024

Vivemos tempos de posições políticas muito extremadas em todo o mundo, como se de repente tivéssemos perdido toda a capacidade de moderação, de domínio próprio e do equilíbrio que caracteriza as relações sociais e humanas nas sociedades mais prósperas. Bem sei que as redes sociais – espaços públicos sem qualquer espécie de filtro – potenciam este estado de coisas, mas duvido que essa circunstância explique tudo.

No mundo religioso parece verificar-se também uma tendência para o populismo, a que podemos chamar populismo religioso, como se tem visto abundantemente nas Américas mas também na Ásia. Nos últimos anos temos visto líderes religiosos a cair no mesmo tipo de discursos maniqueístas que animam os populistas políticos de extrema-direita ou extrema-esquerda neste nosso mundo desvairado. Eles caem sobretudo em dois erros crassos.

Um dos sinais mais evidentes é a prática reiterada do exagero, da mentira, da manipulação e daquilo que se convencionou chamar pós-verdade. No meio religioso verifica-se que a fé foi substituída pelo pensamento mágico. Nalguns meios, ter fé significa retirar a Deus a sua soberania, chegando-se ao limite de afirmar que Ele tem que fazer, uma vez que existem promessas........

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