As celebrações religiosas natalícias não são muito antigas. A Páscoa sempre ocupou um lugar privilegiado no calendário litúrgico, e com razão, visto que, para os crentes, o Cristo Ressuscitado divide a história humana em duas metades. São Paulo chega a escrever que “se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Coríntios 15:14).

Logo, é a morte e a subsequente ressurreição de Jesus que funcionam como fundamento principal, doutrinário e simbólico, de toda a fé cristã. Não será por acaso que a cruz, um instrumento de tortura e morte, representa o sacrifício vicário de Cristo e a eucaristia ou Ceia do Senhor, onde o pão ou a hóstia e o cálice, conforme as tradições, representam o corpo e o sangue do Cristo crucificado, e se apresentam como elementos fundamentais naquele acto memorial perpetuado pela Igreja deste sempre.

Por outro lado, a dramatização da época pascal, incluindo a Quaresma, parecem muito mais em consonância com a negatividade duma certa forma tradicional de viver a religião, ao longo dos séculos, enquanto o Natal nos fala de alegria, celebração, música, paz, boa vontade. Se a Páscoa evoca as lágrimas de Maria e o sofrimento de Jesus, a quadra natalícia remete para o sorriso de quem se sente amado por Deus e para o milagre da vida através do nascimento duma criança.

De todo o modo, foi difícil romper com essa cultura do negro, da tristeza, da culpa, da penitência, do lamento. Por isso foi com muita resistência que o Natal passou a ser celebrado historicamente nos meios cristãos, embora de forma muito tímida no início.

Entretanto, ao longo de praticamente todo o século vinte a quadra natalícia deixou-se encantar pelas baladas do capitalismo e tornou-se descaracterizada no seu sentido original. Hoje não passa de um pretexto para comer e beber bem, se possível, trocar presentes e juntar a família na Consoada e os amigos e colegas de trabalho em jantares de empresa, razão por que o comércio e a restauração têm nesta quadra um dos seus melhores períodos de negócio em todo o ano.

De algum modo todos atraiçoámos a essência do Natal. Trocámo-la por uma espécie de adultério com a cultura do desperdício, despesismo, glutonaria e embriaguez. Nestas alturas esquecemos por um momento os milhares de pobres que morrem de fome e subnutrição neste nosso mundo, assim como as guerras, a miséria e os abusos de que são alvo os mais fracos e socialmente vulneráveis.

Ainda nos deixamos tocar pela bela estória de uma manhã de Natal, durante a Grande Guerra, quando ingleses e alemães decidiram sair das trincheiras e ter um momento de paz, diversão e fraternidade entre inimigos, mesmo contra a vontade dos respectivos comandos. E tudo começou com uma simples e espontânea canção de Natal.

Mas em nenhuma das muitas guerras que hoje grassam por esse mundo fora seria possível repetir hoje essa pausa e esse momento. Porquê? Porque o mundo está pior. E sobretudo porque hoje os soldados talvez já nem saibam cantar de cor as verdadeiras canções natalícias, aquelas que falam do sentido da época, mas apenas os temas comerciais que são feitos para dançar e vender.

Neste Natal vão continuar a morrer crianças, mulheres, jovens e idosos debaixo das bombas do inimigo, vão continuar a morrer jovens soldados e outros a ficarem feridos e estropiados para o resto da vida. Neste Natal vamos continuar a ver prédios de habitação serem destruídos à bomba, mas também escolas, infantários, mercados, teatros, centros comerciais, monumentos, hospitais, maternidades e igrejas. Vamos continuar a ver enterrar os soldados mortos em combate ou vítimas de danos colaterais e evacuar os feridos para a rectaguarda.

E tudo porque a mensagem dos anjos aos pastores, nos campos de Belém, está esquecida e remetida à condição de leitura litúrgica mas inócua: “Glória a Deus nas alturas, Paz na terra, boa vontade para com os homens” (Lucas 2:14). Mas alguns ainda pensam que os anjos declararam “paz na terra entre os homens de boa vontade”, procurando dividir assim os “homens de bem” dos outros.

Não. A mensagem celestial era outra. Ela reivindicava boa vontade entre todos os homens. Desgraçadamente esta confusão ainda permanece na guerra e na política. É tempo de acabar com ela.

Deixo aqui o desejo de um Natal abençoado a todos os leitores. Mas um Natal com sentido.

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Natal, sim, mas com sentido

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20.12.2023

As celebrações religiosas natalícias não são muito antigas. A Páscoa sempre ocupou um lugar privilegiado no calendário litúrgico, e com razão, visto que, para os crentes, o Cristo Ressuscitado divide a história humana em duas metades. São Paulo chega a escrever que “se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Coríntios 15:14).

Logo, é a morte e a subsequente ressurreição de Jesus que funcionam como fundamento principal, doutrinário e simbólico, de toda a fé cristã. Não será por acaso que a cruz, um instrumento de tortura e morte, representa o sacrifício vicário de Cristo e a eucaristia ou Ceia do Senhor, onde o pão ou a hóstia e o cálice, conforme as tradições, representam o corpo e o sangue do Cristo crucificado, e se apresentam como elementos fundamentais naquele acto memorial perpetuado pela Igreja deste sempre.

Por outro lado, a dramatização da época pascal, incluindo a Quaresma, parecem muito mais em consonância com a negatividade duma certa forma tradicional de viver a religião, ao longo dos séculos, enquanto o Natal nos fala de alegria, celebração, música, paz, boa vontade. Se a Páscoa evoca as lágrimas de Maria e o........

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