A cena icónica da Última Ceia apenas regista a presença de Jesus e dos doze à mesa, mas não diz que elas não estavam lá. A arte sacra consagrou apenas a mesa e quem nela se sentava. Dos clássicos, apenas a obra de Fra Angelico mostra a mãe de Jesus na cena, mas o contexto geral dos evangelhos aponta para outros participantes do momento, incluindo presenças femininas. Margaret Hebblethwaite considera mesmo ser “impensável que as mulheres tenham sido excluídas” (The Tablet, 23 Março 2024, Were women at the Last Supper?).

Estudos teológicos questionam cada vez mais que o momento tenha contado apenas com participações masculinas. Com efeito, os evangelhos sinópticos dão ênfase apenas à presença dos doze integrantes do colégio apostólico, todos homens. Segundo Mateus: “E ele disse: Ide à cidade, a um certo homem, e dizei-lhe: O Mestre diz: O meu tempo está próximo; em tua casa celebrarei a páscoa com os meus discípulos. E os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara, e prepararam a páscoa. E, chegada a tarde, assentou-se à mesa com os doze” (26:18-20).

Lucas vai no mesmo sentido: “E, indo eles, acharam como lhes havia sido dito; e prepararam a páscoa. E, chegada a hora, pôs-se à mesa, e com ele os doze apóstolos” (22:13,14). E Marcos também: “E, saindo os seus discípulos, foram à cidade, e acharam como lhes tinha dito, e prepararam a páscoa. E, chegada a tarde, foi com os doze. E, quando estavam assentados a comer, disse Jesus: Em verdade vos digo que um de vós, que comigo come, há de trair-me” (14:16-18). Mas João diz que, depois da Ceia, Jesus lavou os pés aos “discípulos” e não apenas aos apóstolos: “Levantou-se da ceia, tirou as vestes, e, tomando uma toalha, cingiu-se. Depois deitou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido” (13:4,5).

De facto, a investigadora lembra que Jesus esteve na Última Ceia com os seus “discípulos” (Mateus 26:17, 18, 19, 26; Marcos 14:12, 14, 16; Lucas 22:11, 39; João 13:5): “Os discípulos (μαθητα, mathētai, do verbo μανθάνω, manthanō, “aprender”) constituem um grupo mais amplo e os Doze foram escolhidos entre eles: ’Chamou os seus discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais também chamou apóstolos’ (Lucas 6:13). Apóstolos (πόστολοι, apostoloi, do verbo ποστέλλω, apostellō, “enviar”) são pessoas enviadas em missão. Obviamente, você precisa ser um estudante antes de ser enviado como professor.” Uma leitura capturada pela lógica clerical evita reconhecer outras presenças no momento, além dos apóstolos, isto é, outros discípulos, homens ou mulheres.

Existem inúmeras evidências nos evangelhos de que as mulheres integravam o grupo dos discípulos. Elas estavam presentes com Jesus na Galileia, como Maria de Magdala, Joana, Susana e “muitos outros” (Lucas 8:1-3), e seguiam-no (Mateus 27:55; Marcos 15:40). Os escritores dos evangelhos terão entendido que a presença dos discípulos e das mulheres era presumida, entre outras razões porque a refeição pascal constituía um ritual religioso familiar, pelo que seria inimaginável excluir dela as mulheres.

Por outro lado, por que motivo as “muitas mulheres” que seguiram Jesus desde a Galileia até à cruz (Mateus 27:55) haviam de ser excluídas da refeição pascal, quando reaparecem logo a seguir, na paixão, na cena do Calvário, na ressurreição e no cenáculo?

Hebblethwaite insiste: se o Mestre afirmou “Desejei muito comer convosco esta páscoa, antes que padeça” (Lucas 22:15), ‘como se despediria daquelas mulheres que tanto amava, entre elas Maria de Magdala, Maria de Betânia e a sua própria mãe, se as excluísse do grande evento de despedida que foi também a porta para uma nova forma de relacionamento?

O certo é que os apóstolos estavam sempre acompanhados por mulheres e outros discípulos no Cenáculo. As mulheres “voltaram” para lá do túmulo vazio, para dar o seu relatório “aos onze e a todos os demais” (Lucas 24:9). “Cleofas e seu companheiro foram até lá contar sua história “aos onze e seus companheiros” (Lucas 24:33). “E sabemos que os discípulos que viveram e oraram juntos lá após a Ascensão incluíam mulheres (Actos 1:14).”

A Igreja precisa de recuperar de uma vez por todas a posição das mulheres na história da salvação e na tradição cristã, assim como dignificar a sua presença e suporte fundamental na vida da ekklesia Kyrios.

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Onde estavam as mulheres?

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03.04.2024

A cena icónica da Última Ceia apenas regista a presença de Jesus e dos doze à mesa, mas não diz que elas não estavam lá. A arte sacra consagrou apenas a mesa e quem nela se sentava. Dos clássicos, apenas a obra de Fra Angelico mostra a mãe de Jesus na cena, mas o contexto geral dos evangelhos aponta para outros participantes do momento, incluindo presenças femininas. Margaret Hebblethwaite considera mesmo ser “impensável que as mulheres tenham sido excluídas” (The Tablet, 23 Março 2024, Were women at the Last Supper?).

Estudos teológicos questionam cada vez mais que o momento tenha contado apenas com participações masculinas. Com efeito, os evangelhos sinópticos dão ênfase apenas à presença dos doze integrantes do colégio apostólico, todos homens. Segundo Mateus: “E ele disse: Ide à cidade, a um certo homem, e dizei-lhe: O Mestre diz: O meu tempo está próximo; em tua casa celebrarei a páscoa com os meus discípulos. E os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara, e prepararam a páscoa. E, chegada a tarde, assentou-se à mesa com os doze” (26:18-20).

Lucas vai no mesmo sentido: “E, indo eles, acharam como lhes havia sido dito; e prepararam a páscoa. E, chegada a hora, pôs-se à mesa,........

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