Uma procuradora-geral adjunta arriscou sair do silêncio e publicar um texto no jornal Público onde partiu a louça toda. O inefável sindicato dos magistrados do MP veio a correr criticá-la, mas não conseguiu rebater nenhuma das anomalias cirúrgica e criteriosamente apontadas no artigo.

Pelo contrário, o sindicato procurou distorcer o que foi dito, fazendo crer que a autora estaria a defender a perda de autonomia do MP perante o governo, o que é manifestamente falso. Dar a entender que os procuradores estão em roda livre não significa que deva ser o governo a “controlá-los”, como é manifestamente evidente. A verdade é que, perante o que se tem passado com figuras públicas com elevada notoriedade, imagino o calvário por que passará o cidadão comum.

Ainda hoje, passados oito anos, o país está à espera do julgamento de um antigo primeiro-ministro cuja imagem foi destruída por fugas sistemáticas ao segredo de justiça, por uma detenção à saída do voo de regresso a Lisboa, dada em directo nas televisões e por 330 dias de prisão, além do vídeo de um interrogatório tornado público. Inocente ou culpado, o cidadão foi sendo cozido em lume brando anos a fio, quando fazer justiça seria já lhe ter sido concedido o direito a um julgamento.

Um pequeno exemplo do que está mal. Em 2021, numa entrevista à Lusa, o então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Joaquim Piçarra, defendia a extinção do TIC por considerar que teria havido deturpação nas suas finalidades, e reconhecia ser incompreensível o tempo excessivo da investigação e da instrução dos megaprocessos criminais.

Continuam a verificar-se demasiados casos estranhos. Basta ver a canalhice que fizeram a Carlos Macedo, um político social-democrata prometedor, ou a Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso no caso Casa Pia, pessoas que foram enxovalhadas em público e afinal, declaradas inocentes. Ou as buscas a casa de Rui Rio, sempre com as televisões à perna. Ou o que sucedeu agora com a detenção do autarca de Sines durante quase uma semana, para depois ser libertado sem qualquer acusação… Tudo isto é digno duma república das bananas.

Para cúmulo, consta que a PGR terá ficado muito surpreendida com a reacção do primeiro-ministro em demitir-se imediatamente. Como? Então a procuradoria põe cá fora um comunicado com uma suspeita grave de corrupção que envolve António Costa e ele ficava impávido e sereno? Essa eventual surpresa, a ser verdade, só pode manifestar irresponsabilidade e incompetência para o exercício do mais alto cargo da magistratura do MP: “Não me sinto responsável por coisa nenhuma”… Ao não ter a coragem de assumir a responsabilidade pela demissão do primeiro-ministro, Lucília Gago deixa a porta aberta a teorias da conspiração que fragilizam o sistema de justiça. Com diz o Negócios: “Os poderes que se escondem em torres de marfim são profundamente questionáveis.”

Segundo Maria José Fernandes foi aqui que chegámos: “Desta sorte, procuradores que não hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não, são o top da competência! Outros magistrados de elevado escalão que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido. Pelo contrário, quem se opõe à estridência processual é rotulado protetor dos corruptos!” E acrescentou: “(…) temo que se tornem cabines herméticas, onde pontuam algumas prima donnas intocáveis e inamovíveis e onde a ‘falta de meios’, de peritos disto e daquilo é sempre a velha razão para os passos de tartaruga a que se movem as investigações.”

Chama-se a isto a influência populista nos meios judiciários. Como bem observa a autora: “Uma coisa é certa: ver um certo político populista de extrema-direita monopolizar a defesa da atuação do MP, dá muito que pensar!”

Não só rejeitamos “Operações Mãos Limpas” à italiana, pois sabemos no que deu, como já vai sendo mais do que tempo para discutir o funcionamento do MP, pela simples razão de que por vezes funciona muito mal, no atropelo do bom nome a que todos os cidadãos têm direito. O discurso da mesa do café, por ser rasteiro, dará vazão aos instintos mais primários das pessoas e às suas frustrações quotidianas, mas é inadequado e inaceitável para o sistema de justiça. Já basta o exemplo, de um antigo juiz de instrução a mandar piadas de mau gosto contra arguidos em entrevistas à comunicação social.

O MP tem o péssimo hábito de constituir arguido qualquer um por dá cá aquela palha ou sem motivo absolutamente nenhum, impedindo-o de fazer a sua vida normal. Embora essa condição ofereça mais garantias ao indivíduo, a verdade é que não deixa de ser um labéu público.

Fica bem ouvir-se da boca dos políticos que confiam na justiça. Pois eu não confio. Um jurista meu amigo diz que tem mais medo de ir a um tribunal do que ao hospital. Só posso dar-lhe razão.

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Por vezes a justiça parece mais zarolha do que cega

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29.11.2023

Uma procuradora-geral adjunta arriscou sair do silêncio e publicar um texto no jornal Público onde partiu a louça toda. O inefável sindicato dos magistrados do MP veio a correr criticá-la, mas não conseguiu rebater nenhuma das anomalias cirúrgica e criteriosamente apontadas no artigo.

Pelo contrário, o sindicato procurou distorcer o que foi dito, fazendo crer que a autora estaria a defender a perda de autonomia do MP perante o governo, o que é manifestamente falso. Dar a entender que os procuradores estão em roda livre não significa que deva ser o governo a “controlá-los”, como é manifestamente evidente. A verdade é que, perante o que se tem passado com figuras públicas com elevada notoriedade, imagino o calvário por que passará o cidadão comum.

Ainda hoje, passados oito anos, o país está à espera do julgamento de um antigo primeiro-ministro cuja imagem foi destruída por fugas sistemáticas ao segredo de justiça, por uma detenção à saída do voo de regresso a Lisboa, dada em directo nas televisões e por 330 dias de prisão, além do vídeo de um interrogatório tornado público. Inocente ou culpado, o cidadão foi sendo cozido em lume brando anos a fio, quando fazer justiça seria já lhe ter sido concedido o direito a um julgamento.

Um pequeno exemplo do que está mal. Em 2021, numa........

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