Um homem que assassina a companheira da sua vida, além do gesto cobarde, comete um crime hediondo. Este é um tipo de criminalidade que se tem vindo a revelar cada vez mais comum.

Cobarde porque desde logo muitos desculpam-se com a bebida pois não são suficientemente homens para assumirem a intenção criminosa com frontalidade. Outras vezes dizem que não sabem o que lhes passou pela cabeça. E noutras ocasiões não as chegam a matar mas agridem e ferem-nas seriamente, atirando-as para o hospital, e depois pedem perdão, choram e juram a pés juntos que nunca mais repetem. Mas não serve de nada. Um abusador volta sempre à prática do abuso.

Também não se trata de uma questão de educação ou económica, uma vez que a violência doméstica é uma praga em todos os setores da população, independentemente das classes sociais.

A cultura machista de superioridade do masculino e a ideia aberrante dos homens que se julgam no direito de posse da sua mulher abrem caminho para o feminicídio que se regista em diversas regiões do mundo. Foi o que concluíram as investigadoras Debora Piccirillo e Giane Silvestre (Núcleo de Estudos da Violência-Universidade de São Paulo, Brasil). “Esta desigualdade, que está presente nas relações sociais, é baseada na crença de que as mulheres são subalternas aos homens e que suas vontades são menos relevantes. A violência de gênero reflete a radicalização desta crença que, muitas vezes, transforma as mulheres em objetos e ‘propriedade’ de seus parceiros.”

Em Portugal, já foram assassinadas este ano cerca de 25 mulheres pelos companheiros. No Brasil, uma mulher é assassinada em cada seis horas, atingindo-se o número de 1,4 mil mulheres mortas apenas pelo facto de serem mulheres. Em 2022 voltou a aumentar a prevalência deste crime naquele país, um número que é o maior registado desde que a lei de feminicídio entrou em vigor (2015), depois de três anos de estabilização e ao contrário do número geral dos homicídios, que desceu.

No caso brasileiro, a falta de fiscalização sobre abusadores mesmo quando as vítimas estão sinalizadas, o elevado número de armas em circulação e a influência de um discurso da extrema-direita que defende a desigualdade de género nas relações sociais, concorrem para este quadro.

Pesquisadoras como Samira Bueno e Isabela Sobral, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirmam mesmo que “Não se trata, portanto, de crimes passionais, que ocorrem do dia para a noite, mas, pelo contrário, são fruto de uma escalada de diferentes formas de violência que geralmente iniciam com ofensas e humilhações, ciúmes excessivos, violência patrimonial, e evoluem para a violência física.”

Está comprovado que a violência doméstica se verifica também nas famílias religiosas. No meio evangélico brasileiro ainda não se começou a levar o drama a sério. As mulheres são vítimas de uma cultura machista e violenta. Quando procuram ajuda nas lideranças das suas comunidades religiosas recebem quase sempre a receita de que devem perdoar e orar a Deus pelo agressor, mesmo em circunstâncias de perigo de assassínio, que aconselhavam à prestação duma ajuda efectiva, esclarecida e atempada.

Assim, a acrescentar à dependência económica, à preocupação pelos filhos menores e à falta de alternativas para uma vida autónoma, os pastores ainda colocam sobre as vítimas uma carga emocional religiosa que não abre outras saídas senão o conformismo, como se Deus preferisse ver uma mulher assassinada pelo companheiro a uma separação conjugal.

Há três anos a investigadora Simony dos Anjos publicou um texto que concluía com uma pergunta: quantas mulheres terão ainda que ser assassinadas pelos companheiros para segurar o mito da família perfeita? De facto não existem famílias perfeitas pela simples razão de não haver pessoas perfeitas.

Quando a violência doméstica acontece em famílias integradas em comunidades religiosas tais actos criminosos assumem especial gravidade. Fala-se que quarenta por cento do problema no Brasil sucede nas igrejas evangélicas. Muitos líderes religiosos fecham os olhos a tais comportamentos e pressionam as vítimas a “comer e calar” em nome da fé, cometendo assim um novo crime, pelo menos moral, de encobrimento, de desvalorização do sofrimento das vítimas e mesmo um atentado contra a própria fé que pretendem defender.

Mas o mais triste é que o fazem com base numa interpretação equivocada e descontextualizada dos textos bíblicos e da fé cristã, do que resulta uma teologia que mata.

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Quando a religião ajuda a matar

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06.12.2023

Um homem que assassina a companheira da sua vida, além do gesto cobarde, comete um crime hediondo. Este é um tipo de criminalidade que se tem vindo a revelar cada vez mais comum.

Cobarde porque desde logo muitos desculpam-se com a bebida pois não são suficientemente homens para assumirem a intenção criminosa com frontalidade. Outras vezes dizem que não sabem o que lhes passou pela cabeça. E noutras ocasiões não as chegam a matar mas agridem e ferem-nas seriamente, atirando-as para o hospital, e depois pedem perdão, choram e juram a pés juntos que nunca mais repetem. Mas não serve de nada. Um abusador volta sempre à prática do abuso.

Também não se trata de uma questão de educação ou económica, uma vez que a violência doméstica é uma praga em todos os setores da população, independentemente das classes sociais.

A cultura machista de superioridade do masculino e a ideia aberrante dos homens que se julgam no direito de posse da sua mulher abrem caminho para o feminicídio que se regista em diversas regiões do mundo. Foi o que concluíram as investigadoras Debora Piccirillo e Giane Silvestre (Núcleo de Estudos da Violência-Universidade de São Paulo, Brasil). “Esta desigualdade, que está presente nas........

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