De facto, Tolentino há muito que faz a diferença na igreja católica portuguesa. De origem muito humilde – filho de um pescador da Madeira – e tão discreto como despretensioso, mas senhor de um pensamento sólido e de uma sensibilidade notável, como se percebe na sua poesia, consegue fazer a ponte entre a cultura e a fé cristã duma forma que parece simples e normal, mas que só pode ser produto duma reflexão permanente sobre os desafios do crente num mundo de onde Deus já foi afastado há muito.
De sacerdote no Funchal a reitor da historicamente famosa Capela do Rato, passando pela capelania da Universidade Católica, Tolentino tornou-se em 2004 o primeiro director do recém-criado Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, que tinha por objectivo a promoção do diálogo entre o campo católico e o meio cultural do país.
Mas faltava ainda a nomeação como bibliotecário e arquivista da Biblioteca e Arquivo Apostólicos da Santa Sé pelo papa Francisco e a elevação ao cardinalato, assim como o Conselho Pontifício da Cultura. Mas nada disto é relevante para o caso. O que realmente importa é a capacidade de Tolentino conseguir ligar a vivência da fé com a realidade cultural contemporânea, e se ter tornado uma figura relevante da cultura portuguesa, especialmente na literatura.
Em termos teológicos, na “Metamorfose Necessária: Reler São Paulo” ensaia uma abordagem à figura fascinante do Apóstolo dos Gentios e sua obra, mas ainda fica longe da profundidade com que biblistas como Carreira das Neves olharam para o mesmo e sobre ele reflectiram (“São Paulo: dois mil anos depois”, ed. Presença, 2011).
Todavia, a abordagem tolentiniana na obra referida revela uma preocupação particularmente significativa em estudar a relação paulina entre religião e cultura. O autor chega a firmar “Paulo é talvez aquele que, pela primeira vez, separa no mundo antigo a religião da cultura” (p. 106), a partir da polémica então existente, levantada na igreja primitiva sobre a alimentação, e que chegou a colocar Pedro e Paulo em posições divergentes.
A sua preocupação e o seu foco estão muito mais centrados na cultura, no ethos social, do que na teologia bíblica, talvez por que Tolentino é acima de tudo um poeta, um homem de signos, de exploração e elaboração das palavras. A sua dimensão primordial parece ser a exploração da transcendência através das ferramentas do discurso poético, uma vez que este permite reinvenções, transfigurações e construções significantes que ligam o mundo das palavras ao mundo do sentir e do ser, de modo a aprofundar todos eles.
José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, aponta-lhe o “(…) precioso contributo para uma cultura de busca de sentido e de convergência, no mundo complexo e diversificado em que vivemos, alimentando o sonho de um futuro de dignidade, justiça e paz para toda a humanidade (…)”. Por outro lado, o patriarca de Lisboa classifica Tolentino Mendonça como um “humilde e generoso peregrino da esperança”.
Cremos que o papel dos profetas contemporâneos é justamente esse, serem portadores e proclamadores de esperança, ainda que apontem sem tibiezas os pecados sociais e pessoais, à semelhança dos profetas do Antigo Testamento, mas que sempre concluíam a sua mensagem deixando aberta a porta da esperança. E se este mundo precisa dela como pão para a boca.
Depois de Francisco, o homem das periferias, da vida frugal, da abertura ao mundo, das causas e da transformação da igreja católica de masculina a humana, e duma instituição rigidamente hierárquica à sinodalidade – ou pelo menos da sua tentativa – o que fazia falta mesmo era termos um poeta sentado na cadeira papal. Convenhamos que era bonito.
Na publicação em livro que inclui o discurso das celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, realizado a 10 de junho de 2020, José Tolentino Mendonça é apresentado como poeta, sacerdote e professor (“O Poder da Esperança”, ed. Quetzal, 2020).
Não será por acaso que a condição de poeta vem antes de qualquer outro elemento identificativo.
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Tolentino: antes de mais, um poeta
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27.12.2023
De facto, Tolentino há muito que faz a diferença na igreja católica portuguesa. De origem muito humilde – filho de um pescador da Madeira – e tão discreto como despretensioso, mas senhor de um pensamento sólido e de uma sensibilidade notável, como se percebe na sua poesia, consegue fazer a ponte entre a cultura e a fé cristã duma forma que parece simples e normal, mas que só pode ser produto duma reflexão permanente sobre os desafios do crente num mundo de onde Deus já foi afastado há muito.
De sacerdote no Funchal a reitor da historicamente famosa Capela do Rato, passando pela capelania da Universidade Católica, Tolentino tornou-se em 2004 o primeiro director do recém-criado Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, que tinha por objectivo a promoção do diálogo entre o campo católico e o meio cultural do país.
Mas faltava ainda a nomeação como bibliotecário e arquivista da Biblioteca e Arquivo Apostólicos da Santa Sé pelo papa Francisco e a elevação ao cardinalato, assim como o Conselho Pontifício da Cultura. Mas nada disto é relevante para o caso. O que realmente importa é a........
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