No Fausto, de Goethe, a grandiosa tragédia clássica alemã em que o protagonista, com tanto de ingénuo como de ambicioso, faz um pacto com Mefistófeles, há uma pequena tirada que abarca um traço essencial da Humanidade: “A lei é poderosa; mais poderosa, porém, é a necessidade.” A necessidade, ou o que se imagina como tal, faz o Homem perder a moral e a razão.

Foi o que Pedro Sánchez viu como uma necessidade imperiosa – evitar que a extrema-direita chegue ao poder em Espanha – que o levou, tal como Fausto, a fazer um pacto com o diabo. O objetivo de Sánchez, sublinhe-se, era legítimo: a chegada da extrema-direita ao governo, em Espanha, representa um rombo para a democracia espanhola e, até mesmo, um retrocesso civilizacional. O problema é que a solução alternativa que o recém-empossado primeiro-ministro de Espanha encontrou não é melhor.

O acordo estabelecido entre o PSOE e o Junts per Catalunya, que permitiu a investidura de Sánchez, dá proveniência a antigas exigências independentistas, a maior das quais a polémica amnistia alargada “tanto aos responsáveis como aos cidadãos que, antes e depois da consulta de 2014 e do referendo de 2017, tenham sido objeto de decisões ou processos judiciais vinculados a estes acontecimentos”. Estão, estima-se, mais de 300 cidadãos abrangidos. Além disso, Sánchez ofereceu ainda a marcação de “um referendo sobre a autodeterminação do futuro político da Catalunha”, um modelo de financiamento diferenciado para a Catalunha e um perdão de 20% da dívida da região.

Para conseguir uma maioria, Sánchez precisou ainda do apoio da aliança à esquerda Sumar, mas também de negociar favores com a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), a coligação basca EH Bildu, o Partido Nacionalista Basco (PNV), o Bloco Nacionalista Galego (BNG) e a Coligação Canária (CC). Um artilugio (geringonça em espanhol) bastante complexo, de geometrias e interesses altamente variáveis, com muito por onde correr mal. Há quem diga que Sánchez prossegue sobre gelo fino – parece-me mais que corre descalço sobre brasas.

Sánchez, que ficou em segundo lugar nas eleições gerais, corre riscos de ganhar o governo, mas perder o país. A indignação popular que se tem visto pelas ruas, onde milhares se têm manifestado diariamente desde há duas semanas, tem raízes fundas: há séculos que Espanha convive com movimentos independentistas e regionalistas que ameaçam a sua soberania, um processo que deixou marcas sangrentas na memória coletiva. Só a ETA, organização nacionalista basca, e grupos simpatizantes, como os Comandos Autónomos, fizeram mais de 800 vítimas em 53 anos de terror, cuja luta armada só terminou há 12 anos.

Um dos acontecimentos mais esclarecedores da semana de investidura espanhola foi destacado por Joaquín Manso, diretor do El Mundo. O número três do PSOE, Santos Cérdan, disse que desde março que está em contacto com o Junts, esclarecendo que o acordo nunca correu perigo. Uma admissão clara de que a amnistia, que Pedro Sánchez negou sempre durante a campanha, estava a ser negociada com o fugitivo Carles Puigdemont, agora amnistiado, antes das eleições e ocultada dos cidadãos.

Não vou tão longe como Isabel Díaz Ayuso, a nova estrela do Partido Popular, que acusa o PSOE de “introduzir uma ditadura pela porta de trás”, mas parece-me evidente o desprezo pela ética democrática e pela transparência perante o eleitorado. A questão que se impõe é sempre a mesma – onde devem ser colocadas as linhas vermelhas? À qual acrescem outras duas: São estes acordos, que põem em causa a soberania, menos prejudiciais para a democracia espanhola do que a presença do Vox no governo? Não é isto ir longe demais para bloquear a alternância e perpetuar-se no poder?

Com a fragmentação de voto e encolhimento dos centrões, e o crescimento de franjas radicais um pouco por todo o lado, estas são questões com que vários países europeus, destacando-se Portugal, se confrontam ou vão confrontar. E que são válidas tanto para a extrema-direita – e há já 15, em 27 Estados-membros da União, onde a extrema-direita tem mais de 20% nas intenções de voto – como para a extrema-esquerda. Não tenhamos dúvidas: não há puros e impuros, a ameaça pode vir dos dois lados.

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A tragédia espanhola, ou como vender a alma ao diabo

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22.11.2023

No Fausto, de Goethe, a grandiosa tragédia clássica alemã em que o protagonista, com tanto de ingénuo como de ambicioso, faz um pacto com Mefistófeles, há uma pequena tirada que abarca um traço essencial da Humanidade: “A lei é poderosa; mais poderosa, porém, é a necessidade.” A necessidade, ou o que se imagina como tal, faz o Homem perder a moral e a razão.

Foi o que Pedro Sánchez viu como uma necessidade imperiosa – evitar que a extrema-direita chegue ao poder em Espanha – que o levou, tal como Fausto, a fazer um pacto com o diabo. O objetivo de Sánchez, sublinhe-se, era legítimo: a chegada da extrema-direita ao governo, em Espanha, representa um rombo para a democracia espanhola e, até mesmo, um retrocesso civilizacional. O problema é que a solução alternativa que o recém-empossado primeiro-ministro de Espanha encontrou não é melhor.

O acordo estabelecido entre o PSOE e o Junts per Catalunya, que permitiu a investidura de Sánchez, dá proveniência a antigas exigências independentistas, a maior das quais a polémica amnistia alargada “tanto aos responsáveis como aos cidadãos que,........

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