Quando escrevi o meu primeiro editorial como diretora da VISÃO, em setembro de 2016, fui buscar um poema de Sophia de Mello Breyner. Há muitos anos que o via como uma boa metáfora sobre a estranha forma de vida que é ser jornalista neste século. Somos todos nós, como os marinheiros que a poeta eternizou, “os que avançam de frente para o mar” e “vivem de pouco pão e de luar”.

O mar está bravo e a noite é escura, mas temos as estrelas que iluminam o percurso, escrevi na altura e continuo a acreditar. Sete anos volvidos, as ondas subiram de tamanho e o céu ficou um pouco mais breu. Os caminhos, não apenas da imprensa, mas dos média em geral, são temas sobre os quais os jornalistas raramente falam publicamente. Como juízes em causa própria que somos, deixamos para os outros as críticas e as defesas do nosso trabalho. Mas a crise que se abateu sobre a comunicação social não é apenas um tema corporativo, é uma efetiva ameaça à democracia.

Grande parte dos problemas dos média se deve ao ato kamikaze global que a indústria cometeu, no advento da internet, ao começar a oferecer conteúdos que custam dinheiro a produzir. Criou-se na cabeça dos leitores a ideia de que a informação vale menos do que uma commodity, como se fosse um rio inesgotável que corre para quem quiser banhar-se a custo zero. Os ganhos que os publishers achavam que teriam com este aumento da circulação no digital apenas compensaram uma ínfima parte do que tem sido o constante declínio das receitas publicitárias da imprensa nas últimas duas décadas. A fatia de leão vai para os gigantes tecnológicos que passaram a intermediar os conteúdos alheios sem pagar nada por eles. A somar a isso, há golpes autoinfligidos: equipas de gestão incapazes e opções editoriais pelo sensacionalismo, o facilitismo, a leveza e a precipitação de dar primeiro, com redações cada vez mais pequenas e mais precárias, que descredibilizam os média um pouco por todo o mundo.

A polarização política, a reboque das redes sociais, contribuiu para a descredibilização dos média tradicionais, tarefa na qual se empenharam com afinco os engenheiros do caos. Os mainstream média (Donald Trump chamou-lhes “lamestream media”) são, em todo o mundo, apontados como “parte do sistema” pelos populistas que querem deitá-lo abaixo, e que beneficiam em menorizar os mensageiros que lhes apontam as falhas e as contradições.

O tema do futuro dos média dá para um tratado, as respostas certeiras valem milhões e, infelizmente, ninguém ainda as encontrou com segurança, a não ser os grandes players globais que produzem conteúdos para uma escala quase planetária. Na imprensa local, este continua a ser um quebra-cabeças existencial. E a sobrevivência do quarto poder, essencial numa sociedade democrática para informar, escrutinar os poderes e formar cidadãos, está ameaçada um pouco por todo o lado.

Na VISÃO, sempre soubemos por onde queríamos ir e por onde não iríamos. Apesar dos tempos de convulsão no setor, nos últimos anos a família VISÃO rejuvenesceu, diversificou-se e cresceu muito. À Júnior e à História juntaram-se a VISÃO Saúde, a VISÃO Biografia, a VISÃO Açores, a VISÃO Madeira, a VISÃO Saber, e ainda A Nossa PRIMA – nichos de mercado com leitores atentos. A revista cresceu também no digital, com muitos videocasts, podcasts e newsletters. Fez dezenas de eventos e conferências, recebeu dezenas de prémios.

A VISÃO é hoje, graças ao trabalho e ao esforço desta excelente equipa, uma marca de informação sólida com 30 anos, multiplataforma, líder do seu segmento – bem à frente da concorrência, em audiência e circulação paga –, com um leque de colunistas de referência e uma invejável carteira de comprometidos assinantes. E, não menos importante, a VISÃO traz hoje uma margem de contribuição positiva para o grupo.

Quando aceitei assumir a direção da VISÃO em 2016, não imaginava o quanto este caminho à frente da newsmagazine mais lida do País seria extraordinário. Têm sido anos tão duros como frenéticos, emocionantes e criativos, em que trabalhei – lado a lado com o enorme Rui Tavares Guedes – com um conjunto de gente boa que ama o jornalismo e honra, como poucos, todos os dias a mui nobre profissão de informar e a história do título e dos seus fundadores. Anos em que, também pessoalmente, cresci e que me transformaram, como pessoa e como jornalista.

Só posso agradecer por ter tido este imenso privilégio. Mas, como sempre disse, e aprendi com os melhores, “está-se” diretora, não “se é” diretora. E eu senti que está na altura de sair e de mudar. Com a certeza de que esta equipa vai continuar na luta e na defesa dos seus valores, que vêm desde 1993 – isenção, rigor, qualidade, independência.

Esta é a minha última edição como diretora, deixarei a revista em janeiro, e por isso aqui humildemente me despeço. A todos os meus colegas, muito obrigada pelo prazer diário da vossa companhia e pelo que aprendi convosco – ficam muitas saudades. A todos os colunistas, colaboradores, parceiros ao longo deste período, muito obrigada pelo vosso profissionalismo – os vossos contributos foram essenciais. A todos os leitores, que confiaram no meu trabalho e me leram, tanto no papel como no digital, muito obrigada pela vossa preferência e atenção – ela valeu ouro. É preciso ter VISÃO.

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Aqui me despeço. Editorial de Mafalda Anjos

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27.12.2023

Quando escrevi o meu primeiro editorial como diretora da VISÃO, em setembro de 2016, fui buscar um poema de Sophia de Mello Breyner. Há muitos anos que o via como uma boa metáfora sobre a estranha forma de vida que é ser jornalista neste século. Somos todos nós, como os marinheiros que a poeta eternizou, “os que avançam de frente para o mar” e “vivem de pouco pão e de luar”.

O mar está bravo e a noite é escura, mas temos as estrelas que iluminam o percurso, escrevi na altura e continuo a acreditar. Sete anos volvidos, as ondas subiram de tamanho e o céu ficou um pouco mais breu. Os caminhos, não apenas da imprensa, mas dos média em geral, são temas sobre os quais os jornalistas raramente falam publicamente. Como juízes em causa própria que somos, deixamos para os outros as críticas e as defesas do nosso trabalho. Mas a crise que se abateu sobre a comunicação social não é apenas um tema corporativo, é uma efetiva ameaça à democracia.

Grande parte dos problemas dos média se deve ao ato kamikaze global que a indústria cometeu, no advento da internet, ao começar a oferecer conteúdos que custam dinheiro a produzir. Criou-se na cabeça dos leitores a ideia de que a informação vale menos do que uma commodity, como se fosse um rio inesgotável que corre para quem quiser banhar-se a custo zero. Os ganhos que os publishers achavam que teriam com este aumento da........

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