“Os portugueses deram a maioria absoluta a um partido, mas também a um homem, V. Exa. Um homem que, aliás, fez questão de personalizar o voto, ao falar da escolha entre duas pessoas para a chefia do governo. Não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições, possa ser substituído por outro a meio do caminho.” As palavras de Marcelo Rebelo de Sousa na tomada de posse do XXIII Governo ecoam no ar depois do pedido de demissão de António Costa, sob suspeita na sequência de uma investigação sobre os negócios de lítio e hidrogénio. Caída a bomba atómica da suspeição sobre o primeiro-ministro e mais dois ministros deste Governo, entre outros arguidos, todos os caminhos levam a que, algures entre final de janeiro e meados de fevereiro, Portugal vá a eleições antecipadas. Teoricamente, várias opções seriam possíveis, porém, nenhuma outra é politicamente viável.

As notícias do pântano de Guterres parecem, a esta distância, manifestamente exageradas: agora sim, estamos no pântano, e com lama até aos tornozelos. Caído um Governo de maioria absoluta que garantia alguma estabilidade, pelo menos formal, até 2026, pela frente temos agora apenas uma enorme incógnita. Aquele cenário do qual Marcelo Rebelo de Sousa fugia é agora uma realidade: um manto de incerteza sobre o resultado das eleições, mas que, com grande probabilidade, trará maior instabilidade.

Tendo António Costa anunciado que não se recandidata a primeiro-ministro, começa a corrida pela sua sucessão no PS. Pedro Nuno Santos e Fernando Medina são dados como certos na grelha de partida, com as suas visões e posicionamentos ideológicos bem distintos. Se o primeiro anda a trabalhar há anos para apanhar as bases e um eleitorado mais à esquerda, o segundo chega aos centristas e moderados com o argumento das contas certas. Para ambos, o timing não é perfeito: Pedro Nuno precisava de tempo para se vender como alternativa, depois da saída intempestiva do Governo; Medina idem, para se afastar da derrota que sofreu na câmara da capital. Um hipotético trunfo fora do baralho, Mário Centeno, como chegou a aventar-se em Belém, não tem nenhuma vantagem em adiantar-se agora. Uma coisa é certa: nenhum deles possui as competências de António Costa, o político experimentado capaz de tirar coelhos da cartola, a quem o Presidente chamou “mata-borrão”. Uma maioria absoluta é inimaginável, e repetir uma Geringonça é muito mais difícil hoje do que foi em 2015 – senão impossível. As posições do PCP sobre política externa, sobretudo as guerras, vieram complicar tudo ainda mais.

À direita, o cenário é sombrio. Luís Montenegro também tem pedido tempo para convencer o País de que é uma alternativa ao governo do PS, porque, até agora, a verdade é que poucos o veem como tal. Todas as últimas sondagens são consistentes em mostrar um PSD que não se consegue impor, e quaisquer cenários de chegar ao Governo implicariam sempre um entendimento com o Chega. A linha vermelha que Montenegro disse, há um mês, na Madeira, a suar em bica e depois de uma vitória com sabor a derrota, que não iria ultrapassar: “Não vamos governar, nem a Madeira nem o País, com o apoio do Chega, porque não precisamos.” Dias mais tarde, acrescentou: “Chegou uma altura em que não vale a pena alimentarmos mais esse assunto. Não é não, ponto final.” Já deve estar arrependido. Já nas hostes laranja chora-se, de forma mais ou menos velada, por Pedro Passos Coelho, visto como o único que conseguiria fazer encolher o Chega e Iniciativa Liberal. Mas, nesta altura do campeonato, já não se vislumbram formas de fazer destronar Montenegro.

O maior beneficiado é André Ventura, claro está, que nem por encomenda poderia ter um desfecho mais favorável aos seus intentos. Melhor é impossível, para dar gás ao discurso populista da “limpeza”, dos “bandidos” e da “terceira mão”, e para acicatar os medos e os ressentimentos e um discurso justiceiro, securitário e xenófobo, com um cenário de polarização ao rubro. A guerra no Médio Oriente é um bónus que saberá aproveitar. Um resultado nas próximas eleições superior a dois dígitos parece seguro.

Entretanto, o mundo continua a girar e, por cá, a patinhar-se no lodo. Idealmente, haveria um orçamento ainda aprovado na especialidade, para que o País não ficasse em duodécimos mais seis meses e os portugueses recuperassem algum rendimento, mas pode não ser possível. Em suspenso ficam a venda da TAP (um governo demissionário não tem legitimidade para reprivatizar, depois de tudo o que criticou a privatização feita pelo executivo de Pedro Passos Coelho em moldes semelhantes), a decisão sobre a nova localização do aeroporto, o acordo com os médicos para resolver a situação “dramática”, a solução dos problemas das escolas, a fiscalização da execução do PRR. Já a Justiça fica com a própria espada apontada à barriga. Se este caso – que mandou abaixo um governo de maioria absoluta – não se revelar inquestionavelmente sólido, cometeu hoje um ato fatal de haraquíri.

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Portuguesas e portugueses, bem-vindos ao pântano

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08.11.2023

“Os portugueses deram a maioria absoluta a um partido, mas também a um homem, V. Exa. Um homem que, aliás, fez questão de personalizar o voto, ao falar da escolha entre duas pessoas para a chefia do governo. Não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições, possa ser substituído por outro a meio do caminho.” As palavras de Marcelo Rebelo de Sousa na tomada de posse do XXIII Governo ecoam no ar depois do pedido de demissão de António Costa, sob suspeita na sequência de uma investigação sobre os negócios de lítio e hidrogénio. Caída a bomba atómica da suspeição sobre o primeiro-ministro e mais dois ministros deste Governo, entre outros arguidos, todos os caminhos levam a que, algures entre final de janeiro e meados de fevereiro, Portugal vá a eleições antecipadas. Teoricamente, várias opções seriam possíveis, porém, nenhuma outra é politicamente viável.

As notícias do pântano de Guterres parecem, a esta distância, manifestamente exageradas: agora sim, estamos no pântano, e com lama até aos tornozelos. Caído um Governo de maioria absoluta que garantia alguma estabilidade, pelo menos formal, até 2026, pela frente temos agora apenas uma enorme incógnita. Aquele cenário do qual Marcelo Rebelo de Sousa fugia é agora uma realidade: um........

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