Passaram pouco mais de dez anos desde as noticiadas investidas de Paulo Portas sobre a equipa de Woody Allen, procurando que a capital portuguesa fosse cenário de um filme do aclamado realizador, seguindo os passos de Paris, Roma, Veneza, Barcelona e Londres. Nesse ano de 2012, o cinema surgia como uma alavanca na imagem de Lisboa e de Portugal, forma eficaz de colocar a cidade e o país nas bocas do mundo, atraindo turistas, potenciando a onda de visibilidade internacional que já se fazia sentir.

Mas não só o filme não teve lugar, como a projeção internacional da cidade nada ficou comprometida por não ter tido esse potenciador diretamente vindo de Hollywood. De resto, Lisboa e Portugal são campo fértil para o imaginário de muitos artistas como, por exemplo, Paul Auster que, na sua obra magistral A Noite do Oráculo (2003, editada em Portugal em 2004) coloca o protagonista, o escritor Sidney Orr, a comprar, em plena Brooklyn, um bloco de notas azul de fabrico português, abrindo nove dias de vida repletos de premonições em que o caderno é, verdadeiramente, oracular.

Dando cumprimento ao desejo de Paulo Portas, o ano de 2024 abriu com a estreia do filme Pobres Criaturas, por muitos aclamado como “filme-sensação”, com Emma Stone como protagonista no papel de Bella Baxter. Este filme, também apelidado de “bizarro”, tem a assinatura do realizador Yorgos Lanthimos, partindo do livro homónimo, Poor Things, de Alasdair Gray (1992).

Mas mais que curiosidade, interessa compreender que imagem, que representações se vão construindo de Portugal, elementos muito importantes na definição de uma autoimagem e de uma identidade. Se as identidades se definem ao espelho de tudo o resto, então é de suma importância entender como somos vistos, como somos retratados nessas imagens que percorrem mundo.

O pano de fundo é um misto entre vários universos oníricos: por um lado, um mundo de criaturas híbridas que nos faz lembrar Frankenstein, em que Bella Baxter, a personagem interpretada por Emma Stone, é uma mulher adulta a quem é retirado o seu cérebro e é colocado no seu lugar o de uma criança, por acaso, seu filho; por outro lado, o universo futurista de Metropolis, com um cheirinho a Júlio Verne, onde a tecnologia ganha formas pitorescas; e, por fim, o lado barroco e colorido dos cenários e mesmo do guarda-roupa, a lembrar o universo de quase animação de uma Alice no País das Maravilhas, ou mesmo de Willy Wonka.

Lisboa é a cidade dos pastéis de nata, peça central na afirmação sensorial e erótica de Bella Baxter, mas é também a cidade que marcada por um casal a discutir. Lisboa é, ainda, a experiência com o bagaço numa qualquer taberna, e o fado. O êxtase quase místico de Bella Baxter ao se deparar com Carminho a cantar numa varanda de uma Alfama recriada nesse universo pictórico, todo ele superlativo.

Lisboa é a primeira paragem de Bella Baxter, na sua viagem que a reconduzirá a casa, mas já adulta na sua consciência. É em Lisboa que se dão os despertares, que se inicia a busca que a levará a outros locais. Mas Lisboa é genesíaca no nascimento de um novo ser que, depois do hibridismo fisiológico, começa a ganhar personalidade, vontade e desejos.

Da paisagem, reconhecemos o Bordéus e do Tejo, as Ruínas do Carmo, e pouco mais. O resto é cenário que interpreta o que circula internacionalmente como Lisboa. São conceitos, ideias condensadas, retratos como que estáticos, idealizados. Sim, isso é Lisboa: as representações que dela se constroem.

Regressando Woody Allen, como desejo de ver Lisboa eternizada no grande écran, neste Pobres Criaturas, temos uma Lisboa que surge como um ideário até simpático, onde tudo pode começar, onde o sensorial é rei. Interessante imaginar que é esta a Lisboa que circula um pouco por todo o mundo, resultado de muitos turistas, de muitos Erasmus, de muita diversão. Pena se for apenas isso. Mas merece a pena!

MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR

+ Educação em Transformação: salvação ou engano? A vertigem dos desafios que se colocam ao Ensino Superior no Brasil

+ Ciência, Inovação e Desenvolvimento na Lusofonia: uma aposta

+ Manifesto de Óbidos pela língua portuguesa: Por uma língua de culturas que seja também uma língua de ciência

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

QOSHE - As “Pobres Criaturas” e o desejo de imagem de Lisboa - Paulo Mendes Pinto
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

As “Pobres Criaturas” e o desejo de imagem de Lisboa

13 1
08.04.2024

Passaram pouco mais de dez anos desde as noticiadas investidas de Paulo Portas sobre a equipa de Woody Allen, procurando que a capital portuguesa fosse cenário de um filme do aclamado realizador, seguindo os passos de Paris, Roma, Veneza, Barcelona e Londres. Nesse ano de 2012, o cinema surgia como uma alavanca na imagem de Lisboa e de Portugal, forma eficaz de colocar a cidade e o país nas bocas do mundo, atraindo turistas, potenciando a onda de visibilidade internacional que já se fazia sentir.

Mas não só o filme não teve lugar, como a projeção internacional da cidade nada ficou comprometida por não ter tido esse potenciador diretamente vindo de Hollywood. De resto, Lisboa e Portugal são campo fértil para o imaginário de muitos artistas como, por exemplo, Paul Auster que, na sua obra magistral A Noite do Oráculo (2003, editada em Portugal em 2004) coloca o protagonista, o escritor Sidney Orr, a comprar, em plena Brooklyn, um bloco de notas azul de fabrico português, abrindo nove dias de vida repletos de premonições em que o caderno é, verdadeiramente, oracular.

Dando cumprimento ao desejo de Paulo Portas, o........

© Visão


Get it on Google Play