A “verdade” vai ser o bem mais invocado e disputado nas próximas semanas. Nas dezenas de debates entre os candidatos de cada partido, nas centenas de ações de rua, nos milhares de cartazes e espaços de campanha, nos milhões de publicações nas redes sociais, vamos assistir a uma autêntica competição pelo primado da verdade. Como se cada um fosse dono e senhor da sua “verdade” – a melhor de todas, claro, mesmo quando se descobre depois que, afinal, é mentira.

Em relação a cada setor-chave, qualquer candidato irá empunhar o gráfico que mais lhe convém, procurando demonstrar, com a força dos números, a solidez da sua análise e das suas propostas. Ao mesmo tempo, através da técnica da repetição exaustiva de slogans que se apresentam como “factos”, cada um tentará criar uma perceção na opinião pública quanto aos temas mais sensíveis, como o estado dos serviços públicos, a sensação de insegurança ou o aumento da desigualdade social e económica. Tudo para procurar pontos de contacto entre o candidato e os vários grupos de eleitores, de forma a alcançar laços de confiança que possam resistir até ao dia das eleições – depois, logo se vê…

Todas estas técnicas de propaganda e de manipulação da informação serão, supostamente, medidas em tempo real, através de muitas sondagens, agregadores de estudos de opinião e outras ferramentas que se vão inventando para tentar captar o “pulso” do eleitorado. Assim, ao estilo das grandes competições desportivas, vamos ter também a ilusão de como cada debate, “caso” de campanha ou gaffe podem ter influência no coração dos indecisos, fazendo balançar as previsões em relação à vitória final. E, mesmo que a margem de erro das sondagens apareça escrita em letras pequenas na ficha técnica de cada uma, sabemos que cada subida ou descida de algumas décimas acabará por inspirar horas de debate e de discussão, tanto nas televisões como nas redes sociais – e, com grande probabilidade, acordaremos na alvorada de 11 de março com a sensação de que estivemos entretidos, afinal, durante semanas, a discutir projeções e cenários completamente errados.

Se já sabíamos que a verdade é sempre a primeira vítima da guerra, temos de nos preparar para que seja também a primeira vítima da campanha eleitoral. Desta vez, tendo em conta os ventos de polarização que alastram pelo mundo, o crescimento da intolerância e da violência verbal, num ambiente global de grande incerteza, estão criadas todas as condições para que as próximas semanas se transformem num campo de batalha feroz. E com o aparecimento de armas sofisticadas, capazes de levar a manipulação de informação para um nível inédito – com consequências que ainda ninguém consegue prever.

Com o recurso aos novos instrumentos de Inteligência Artificial, torna-se muito mais fácil criar factos, declarações ou documentos que se veem como “verdades”, mesmo que sejam falsos. Rapidamente e sem necessidade de grandes conhecimentos técnicos, é possível produzir vídeos com a imagem e a voz de um político a dizer algo que ele nunca disse. Ou fazer com que um candidato seja “apanhado” numa situação comprometedora, como se tivesse sido capturado por uma câmara oculta, embora esteja completamente inocente e a sua imagem tenha sido manipulada por uma ferramenta de produção de deepfakes.

Isto não é futurologia nem ficção científica barata. Casos destes estão a ocorrer em diversos locais do mundo e a própria Comissão Nacional de Eleições já se mostrou atenta e preocupada com a possível aparição de vídeos e imagens deste género durante a campanha eleitoral. As antigas fake news, que inundaram há anos as redes sociais, são uma brincadeira de crianças face ao que pode agora ser feito. E, mesmo que todas essas técnicas de manipulação possam ser detetadas, denunciadas e até bloqueadas, ninguém consegue prever as consequências de um vídeo ou de um áudio falso se estes se tornarem virais – e a sua difusão, descontrolada – na véspera das eleições.

Walter Lippmann escreveu, há mais de um século, que “não pode haver liberdade para uma comunidade que não dispõe de meios para detetar mentiras”. É esse o preço que pagará quem abdicar da busca e da defesa da verdade.

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A verdade ao preço da mentira. Editorial de Rui Tavares Guedes

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08.02.2024

A “verdade” vai ser o bem mais invocado e disputado nas próximas semanas. Nas dezenas de debates entre os candidatos de cada partido, nas centenas de ações de rua, nos milhares de cartazes e espaços de campanha, nos milhões de publicações nas redes sociais, vamos assistir a uma autêntica competição pelo primado da verdade. Como se cada um fosse dono e senhor da sua “verdade” – a melhor de todas, claro, mesmo quando se descobre depois que, afinal, é mentira.

Em relação a cada setor-chave, qualquer candidato irá empunhar o gráfico que mais lhe convém, procurando demonstrar, com a força dos números, a solidez da sua análise e das suas propostas. Ao mesmo tempo, através da técnica da repetição exaustiva de slogans que se apresentam como “factos”, cada um tentará criar uma perceção na opinião pública quanto aos temas mais sensíveis, como o estado dos serviços públicos, a sensação de insegurança ou o aumento da desigualdade social e económica. Tudo para procurar pontos de contacto entre o candidato e os vários grupos de eleitores, de forma a alcançar laços de confiança que possam........

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