Durante anos, a regra da “mulher de César” esteve sempre bem sublinhada no manual de um político com ambições. Qualquer um sabia que, para não cair repentinamente em desgraça, não lhe bastava saber que era sério; precisava também de parecer que o era. Uma vez alcançado o poder, o mesmo político tinha igualmente a perfeita consciência de que a sua sobrevivência ficaria dependente dos resultados económicos que conseguisse apresentar. Isto independentemente de algum escândalo por que tivesse passado ou de qualquer erro de avaliação noutros setores. Era a época em que as sondagens raramente se enganavam e a do primado do “é a economia, estúpido” – a frase criada por um dos conselheiros de Bill Clinton, quando o mundo saía da Guerra Fria e parecia entrar numa era de paz e de prosperidade duradouras.

Ainda falta explicar quando e por que razão estas regras se alteraram. Agora, como temos visto em vários países, os bons resultados económicos já não são suficientes para ganhar eleições e passaram até a ser negligenciados nos inquéritos sobre a popularidade dos governantes.

Há poucos dias, o Nobel da Economia Paul Krugman mostrava perplexidade, na sua coluna no The New York Times, com a má avaliação que os eleitores dão a Joe Biden, apesar de os indicadores mostrarem um país a recuperar economicamente, a vencer a inflação e com uma taxa de criação de emprego como não se via há muito tempo. Algo semelhante, na verdade, àquilo a que se assistiu em Portugal, nos últimos tempos, em que os resultados económicos do governo de António Costa entraram numa vertiginosa montanha-russa de avaliações: passou-se depressa da acusação do País que não crescia para o que, afinal, tinha os cofres cheios; bem como daquele que estava a ser ultrapassado pelos outros europeus para, afinal, ser um dos que, comparativamente, obtinham melhores resultados.

O padrão é o mesmo: existe uma discrepância gritante e cada vez mais acentuada entre a realidade e a perceção que as pessoas vão formando acerca dela. Qual a razão para isso? Uma sociedade mais dividida e polarizada, responde Paul Krugman. Com uma justificação que tanto vale para os EUA como para a maioria dos países europeus: “As opiniões sobre a economia tendem a ser determinadas pela filiação política.” Ou seja: independentemente da realidade, o que conta é a opinião que se tem, a priori, sobre o assunto.

Esta é uma conclusão idêntica, aliás, àquela a que chegou Francesco Rigoli, da City, University of London, num estudo agora publicado na revista científica Political Psychology. Segundo ele, as orientações políticas de cada um mudam a nossa perceção em relação ao passado e ao futuro. Num inquérito realizado em seis países, o investigador concluiu que os eleitores de direita costumam olhar para o passado com respeito e nostalgia, enquanto os de esquerda preferem concentrar-se no futuro, com esperança. É essa a diferença que, na sua opinião, existe entre o “Make America Great Again” (Fazer a América grande, outra vez), de Donald Trump, e o “Yes, We Can” (Sim, nós podemos), de Barack Obama.

Mas há ainda outro fator relevante: nalgum momento do passado recente, dentro da regra da “mulher de César”, o “parecer” começou a tornar-se mais importante do que o “ser”. A política, mais do que um debate de ideias, transformou-se num duelo de estratégias de comunicação – que se tornou, por sua vez, o assunto principal da análise e do comentário político.

Vivemos, atualmente, na era das estratégias para a formação da perceção e começámos, aos poucos, a desligar-nos da análise da realidade. E quando a política fica demasiado dependente das perceções, corre o risco de se limitar a vender ilusões – e desligar-se da realidade.

O que se passou, na última semana, com o choque fiscal do Governo de Luís Montenegro – em que depressa se descobriu que 88% da anunciada redução do IRS já estava em execução no Orçamento do Estado que entrou em vigor a 1 de janeiro – é bem revelador desta ânsia de procurar sempre o “parecer” em detrimento do “ser”. Com isso, perde-se o respeito pela verdade e, mais importante, a credibilidade. Ainda que nem todos o percecionem da mesma forma. Só que, no fim, como sabemos, a realidade vencerá sempre qualquer ilusão.

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Ilusões e perceções. Editorial de Rui Tavares Guedes

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17.04.2024

Durante anos, a regra da “mulher de César” esteve sempre bem sublinhada no manual de um político com ambições. Qualquer um sabia que, para não cair repentinamente em desgraça, não lhe bastava saber que era sério; precisava também de parecer que o era. Uma vez alcançado o poder, o mesmo político tinha igualmente a perfeita consciência de que a sua sobrevivência ficaria dependente dos resultados económicos que conseguisse apresentar. Isto independentemente de algum escândalo por que tivesse passado ou de qualquer erro de avaliação noutros setores. Era a época em que as sondagens raramente se enganavam e a do primado do “é a economia, estúpido” – a frase criada por um dos conselheiros de Bill Clinton, quando o mundo saía da Guerra Fria e parecia entrar numa era de paz e de prosperidade duradouras.

Ainda falta explicar quando e por que razão estas regras se alteraram. Agora, como temos visto em vários países, os bons resultados económicos já não são suficientes para ganhar eleições e passaram até a ser negligenciados nos inquéritos sobre a popularidade dos governantes.

Há poucos dias, o Nobel da........

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