Num mundo e num clima político polarizados, em que até o mais simples debate resvala rapidamente para a crispação e, tantas vezes, para a troca de insultos, fazem cada vez mais falta aqueles que se esforçam por tentar olhar para os acontecimentos sob uma perspetiva independente, para depois os relatarem e analisarem com a maior objetividade e rigor de que forem capazes. O resultado desse processo, que deve ter motivos transparentes e seguir regras que potenciem a verificação dos factos, é de uma importância fundamental em qualquer sociedade, em especial nas democráticas: permite fornecer à opinião pública aquilo que, com os meios disponíveis empregues, se aproxima o mais possível da verdade dos factos.

Isto representa, queremos acreditar, um valor essencial na vida das populações, no escrutínio dos poderes públicos ou privados, na vigilância de tudo aquilo que diga respeito ao bem comum.

Mesmo que, por vezes, a realidade nos desiluda, que a evolução que se observa nas sociedades não seja aquela que prevíamos ou desejávamos, a verdade é que temos de continuar a acreditar que uma população mais informada é, igualmente, uma população mais esclarecida. E, portanto, capaz de fazer as melhores escolhas, tomar as decisões mais sábias e, mesmo que mais tarde se arrependa de algo, ter consciência de que não escolheu o caminho errado por falta de informação – mas, sim, por emoção ou por cedência aos impulsos mais básicos e irracionais.

Apesar de todos os erros, dos muitos imprevistos e das apostas estapafúrdias que se foram cometendo, quero continuar a acreditar que hoje – como há mais de quatro décadas, quando comecei a trabalhar numa redação – os jornalistas e o jornalismo são os principais garantes de uma sociedade mais informada, mais esclarecida e tendencialmente mais justa.

Por isso, nestes tempos de crise (mundial) do modelo de negócio em que, durante décadas, assentaram os órgãos de comunicação social, é preciso olhar de frente para o risco que será ter uma sociedade sem jornalismo nem jornalistas. E procurar perceber, também, como se chegou ao estado atual, com ataques cada vez mais sofisticados ao jornalismo independente, buscando a sua descredibilização – numa vertigem quase sempre comandada pelo poder crescente dos disseminadores de desinformação e das realidades alternativas. Mas ajudada também pelas fugas incessantes para “o abismo” de muitos gestores e empresários de ocasião, sem sentido de missão. Sem esquecer, obviamente, os inúmeros erros e “tiros no pé” cometidos nas redações, tantas vezes mais preocupadas com o acessório em vez do essencial.

No estado atual das coisas, este é o momento de cerrar fileiras pela defesa do jornalismo. Sem que subsistam dúvidas sobre o que está em causa. Por uma razão simples: como Winston Churchill dizia sobre a democracia, também o jornalismo é a pior forma de transmitir informação credível e verificada à sociedade, com exceção de todas as outras.

Nestes tempos de crise, de clivagens e até de ajustes de contas, há algo que não se pode perder nem confundir: a defesa que precisa de ser feita é a do jornalismo independente, aquele que cumpre a sua missão com transparência, tentando resistir aos preconceitos (existentes em todos os indivíduos) e às pressões inerentes (quase que diria obrigatórias) de quem detém o poder político, económico ou de influência. O poder do jornalismo está e estará sempre na força da sua independência – qualquer que seja o assunto que aborde. Porque é esse o contrato fundamental que estabelece com o leitor, o ouvinte ou o telespectador. E assenta na garantia de que lhe está a transmitir a verdade que conseguiu apurar, os factos que testemunhou diretamente ou que reconstituiu através do cruzamento de várias fontes. É isso que tem de ser preservado, protegido e encorajado. Sem corporativismos nem caridade, mas sim por necessidade de uma sociedade democrática, com cidadãos informados e esclarecidos.

À independência tem de ser acrescentado o sentido de responsabilidade que a missão do jornalismo exige – antes de qualquer negócio. Como bem escreveu há uns anos o presidente do New York Times, a propósito do que pretendia para o seu jornal, mas que pode e deve ser amplificado para todos os órgãos de comunicação social, grandes ou pequenos, “o nosso objetivo é publicar apenas o que sabemos”. Parece curto, mas é tão cristalino como a própria verdade. “Preferimos perder uma história do que errar”, esclareceu Arthur Gregg Sulzberger. É só isto.

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Independência e responsabilidade. Editorial de Rui Tavares Guedes

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17.01.2024

Num mundo e num clima político polarizados, em que até o mais simples debate resvala rapidamente para a crispação e, tantas vezes, para a troca de insultos, fazem cada vez mais falta aqueles que se esforçam por tentar olhar para os acontecimentos sob uma perspetiva independente, para depois os relatarem e analisarem com a maior objetividade e rigor de que forem capazes. O resultado desse processo, que deve ter motivos transparentes e seguir regras que potenciem a verificação dos factos, é de uma importância fundamental em qualquer sociedade, em especial nas democráticas: permite fornecer à opinião pública aquilo que, com os meios disponíveis empregues, se aproxima o mais possível da verdade dos factos.

Isto representa, queremos acreditar, um valor essencial na vida das populações, no escrutínio dos poderes públicos ou privados, na vigilância de tudo aquilo que diga respeito ao bem comum.

Mesmo que, por vezes, a realidade nos desiluda, que a evolução que se observa nas sociedades não seja aquela que prevíamos ou desejávamos, a verdade é que temos de continuar a acreditar que uma população mais informada é, igualmente, uma população mais esclarecida. E, portanto,........

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