A confiança dos cidadãos nas instituições políticas, judiciais e económicas do país é a principal medida para aferir a solidez e vitalidade de um regime democrático, em que se espera que os titulares de poder sejam eleitos em liberdade, escrutinados de forma independente e exerçam as suas funções no cumprimento das leis e com o máximo respeito pelos cidadãos. Por isso, como tão bem demonstraram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores em Harvard, EUA, o maior perigo para a sobrevivência das democracias já não são os golpes de Estado, como sucedia no passado, mas sim o enfraquecimento e o descrédito em que se vão afundando as instituições fundamentais do Estado. Quando os cidadãos deixam de acreditar nos governantes eleitos, no funcionamento dos tribunais, nos órgãos reguladores da atividade económica ou nos organismos que têm por missão zelar pelos recursos naturais e humanos do país, a democracia transforma-se num corpo moribundo. Torna-se dispensável para as pessoas e fica, portanto, à mercê dos seus inimigos: os arautos do poder autoritário, sem escrutínio ou prestação de contas.O processo de descrédito das instituições é motivado, em grande parte dos casos, por erros próprios, fruto também do normal desgaste causado pela persistência em determinadas práticas, em normativos desajustados da realidade e pela insistência nos mesmos protagonistas, já incapazes de se renovarem ou mudarem comportamentos. Este processo costuma ser lento, mas há momentos em que acelera, de forma vertiginosa, fugindo até ao controlo dos intervenientes. As consequências são trágicas, arrastando personalidades e instituições para um labirinto de lama, de onde ninguém, aos olhos do exterior, é capaz de encontrar uma saída imaculada. Foi isso que aconteceu, na última e alucinante semana, em que Portugal assistiu, em direto e ao vivo, à mais estranha e brutal crise política de que há memória recente.A autodenominada Operação Influencer, lançada pelo Ministério Público, conseguiu, em poucos dias, desencadear uma reação em cadeia absolutamente inédita: derrubou um Governo eleito com maioria absoluta, lançou uma teia de suspeição sobre alguns dos mais importantes e estratégicos setores económicos para o futuro do País e abalou a imagem de Portugal perante o mundo, nomeadamente perante os investidores internacionais.

Pelo caminho, tendo em conta as trapalhadas na transcrição das escutas, os erros encontrados no despacho de indiciação do Ministério Público e a decisão final do juiz de instrução criminal – que deixou todos os arguidos sair em liberdade –, foi dado mais um golpe na credibilidade da Justiça. Este, ainda por cima, aprofundado pelo “ensurdecedor” silêncio a que, desde o início do seu mandato, se tem remetido a procuradora-geral da República, Lucília Gago, que apenas comunica com o País através de comunicados do seu gabinete de Imprensa, raramente com a clareza que se lhe exigia. Se é aconselhável que a PGR tenha uma postura recatada, longe do show mediático tão contaminado pela volúpia dos soundbites, não é admissível que, em 2023, a responsável por um dos órgãos principais da Justiça portuguesa continue sempre escondida numa espécie de torre fortificada, sem dar entrevistas ou conferências de Imprensa. No fundo, sem se sujeitar ao escrutínio da opinião pública, mesmo quando, processo após processo, se vai acumulando a desconfiança sobre a investigação judicial e os processos sem fim ou que acabam por dar em nada.O resultado desta Operação Influencer é, até ao momento, um autêntico desastre. Não só pelos efeitos irrecuperáveis no prestígio da Justiça e na governação, mas também pelo que contribuiu, de modo inédito, para o clima de crispação política, para o cavar de novas e mais irredutíveis trincheiras entre vários setores da sociedade, para um ambiente cada vez mais conflituoso. Um ambiente em que facilmente cada um desiste de procurar a razão, mas apenas procura escolher um dos lados – que, depois, defende de forma áspera e voluntária, sem qualquer sentido crítico. Um ambiente em que se discute mais o acessório do que o substantivo, em que se perde tempo a decifrar semânticas de um qualquer discurso, mas não há espaço para as estratégias de desenvolvimento económico e social.Os efeitos deste ambiente, alimentado por uma crescente profusão de vozes repentistas e justicialistas na comunicação social, são preocupantes. E não serão resolvidos com o voto dos portugueses a 10 de março. O mal está feito. E a influência deste mal vai perdurar, durante muito tempo, sobre a nossa democracia.

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Influência desastrosa

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16.11.2023

A confiança dos cidadãos nas instituições políticas, judiciais e económicas do país é a principal medida para aferir a solidez e vitalidade de um regime democrático, em que se espera que os titulares de poder sejam eleitos em liberdade, escrutinados de forma independente e exerçam as suas funções no cumprimento das leis e com o máximo respeito pelos cidadãos. Por isso, como tão bem demonstraram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores em Harvard, EUA, o maior perigo para a sobrevivência das democracias já não são os golpes de Estado, como sucedia no passado, mas sim o enfraquecimento e o descrédito em que se vão afundando as instituições fundamentais do Estado. Quando os cidadãos deixam de acreditar nos governantes eleitos, no funcionamento dos tribunais, nos órgãos reguladores da atividade económica ou nos organismos que têm por missão zelar pelos recursos naturais e humanos do país, a democracia transforma-se num corpo moribundo. Torna-se dispensável para as pessoas e fica, portanto, à mercê dos seus inimigos: os arautos do poder autoritário, sem escrutínio ou prestação de contas.O processo de descrédito das instituições é motivado, em grande parte dos casos, por........

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