Um político sob suspeita deve renunciar ao cargo público que ocupa? Ou só deverá fazê-lo se for constituído arguido e formalmente acusado, num processo relacionado com as funções que exerce ou de evidente gravidade? Estas perguntas já foram de resposta mais rápida e fácil, quando parecia ser consensual deixar a Justiça seguir o caminho, no seu tempo e modo próprios. A demissão de um titular de cargo político, após ser alvo de suspeitas num processo judicial, era, nessa medida, o dever ético que se impunha – não só para permitir que a investigação prosseguisse livremente mas também, ao mesmo tempo, para evitar que a polémica crescesse e acabasse por atingir outros protagonistas. Agora, há uma dúvida razoável que se impõe e que obriga a outra pergunta, igualmente de resposta difícil, à luz dos casos recentes: até que ponto uma investigação em curso pode, sem provas sólidas e antecipadamente verificadas, pôr em causa o normal funcionamento das instituições políticas?

Durante algum tempo, porventura demasiado, criou-se a perceção de que a Justiça em Portugal era implacável com os poderosos – aqueles que pareciam viver em clima de impunidade, protegidos por quaisquer forças ocultas. Tudo isto estava alicerçado numa cobertura mediática, que detalhava os documentos da investigação, com profusão de escutas, de alegados esquemas fraudulentos e uma infinidade de documentos que, tudo somado, conduziam à imediata condenação do visado… embora apenas na praça pública.

Apesar da quantidade de denúncias e de alegadas “provas”, a decisão final da Justiça não tem, ao longo destes anos, conseguido comprovar em tribunal tudo o que surgia nas acusações e nas páginas de volumosos dossiers processuais – para os quais eram remetidos todos os documentos apreendidos em buscas, mesmo quando pouca ou nenhuma relação tinham com o processo em causa. Na esmagadora maioria, os casos mais mediáticos ou se arrastam anos e anos em tribunal, com recursos e outros expedientes, ou acabam na absolvição dos arguidos.

Agora, assistimos a algo ainda mais inusitado: os juízes de instrução dos casos a desmontar, peça por peça, as investigações e as conclusões do Ministério Público, que levaram à queda de um Governo com maioria absoluta e à do Governo Regional da Madeira. Não só negam a existência de alguns crimes que, para os procuradores, eram mais do que evidentes como até criticam abertamente a forma “vaga” e “genérica” como foi criada a acusação, apenas sustentada em escutas que, segundo o juiz da Operação Influencer, não demonstram mais nada do que a existência, pura e simples, de conversas, sem qualquer vislumbre de crimes tão graves como os de corrupção e prevaricação. Pelo meio, em qualquer dos casos, os suspeitos passaram longos dias privados de liberdade, à espera de interrogatório.

Dizem-nos, com frequência, que tudo isto não é mais do que “a Justiça a funcionar”. Só que esta é uma Justiça a funcionar em clima de guerra fria, com choques cada vez mais sonoros entre magistraturas e conflitos latentes, que aceleram o processo de descredibilização do sistema judicial.

A falta de confiança nas instituições é a principal ameaça a qualquer democracia. E tudo a que temos assistido em relação à Operação Influencer e ao caso da Madeira representam machadadas brutais na confiança dos cidadãos no poder político e no poder judicial. Já não bastava a ideia – repetida como muleta por qualquer populista – de que os políticos são todos corruptos, como agora também se alimenta a perceção, através do silêncio acrítico, de que a Justiça não é de confiança, de que os responsáveis decidem de forma aleatória e de que, ainda por cima, não são responsabilizados pelas consequências dos seus atos.

A situação é grave demais para continuar a ser ignorada, até porque as consequências serão desastrosas. Se tudo continuar como está, chegará o dia em que ninguém decente e competente aceitará ir para a vida política – só porque não quer ver a sua vida devassada nem arriscar-se a ficar detido durante dias, para depois se concluir que, afinal, apenas foi vítima de uma denúncia infundada. E também chegará o dia em que, sem juízes nem tribunais justos, estaremos mergulhados no caos. À Justiça não lhe basta ser cega – precisa também de demonstrar que é decente, e depressa.

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Justiça cega, mas decente

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22.02.2024

Um político sob suspeita deve renunciar ao cargo público que ocupa? Ou só deverá fazê-lo se for constituído arguido e formalmente acusado, num processo relacionado com as funções que exerce ou de evidente gravidade? Estas perguntas já foram de resposta mais rápida e fácil, quando parecia ser consensual deixar a Justiça seguir o caminho, no seu tempo e modo próprios. A demissão de um titular de cargo político, após ser alvo de suspeitas num processo judicial, era, nessa medida, o dever ético que se impunha – não só para permitir que a investigação prosseguisse livremente mas também, ao mesmo tempo, para evitar que a polémica crescesse e acabasse por atingir outros protagonistas. Agora, há uma dúvida razoável que se impõe e que obriga a outra pergunta, igualmente de resposta difícil, à luz dos casos recentes: até que ponto uma investigação em curso pode, sem provas sólidas e antecipadamente verificadas, pôr em causa o normal funcionamento das instituições políticas?

Durante algum tempo, porventura demasiado, criou-se a perceção de que a Justiça em Portugal era implacável com os poderosos – aqueles que pareciam viver em........

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