Se nada de excecional tivesse ocorrido, o caminho para as eleições europeias de junho do próximo ano seguiria o curso normal entre nós: condenadas a ser observadas apenas pelo prisma da política interna, como um barómetro para avaliar a resistência do Governo após a sucessão de “casos e casinhos” e, em simultâneo, atestar a popularidade de um líder da oposição incapaz de “descolar nas sondagens”. Até há poucas semanas, toda a campanha estava destinada a ser dominada pelas questões nacionais, da Saúde à Educação, deixando para um plano secundário os temas decisivos que têm de ser tratados na agenda europeia, como a transição energética, a política migratória, o alargamento europeu, o desenvolvimento económico, a estratégia de defesa, o aprofundar das liberdades e garantias no seio do bloco. De repente, tudo mudou. Agora, com legislativas antecipadas para 10 de março, as europeias de junho arriscam-se até a ser atiradas para a mais profunda irrelevância – porque já não servem de barómetro para nada. Com isso, também se perderá, mais uma vez, a oportunidade de debater os assuntos que realmente impactam o nosso futuro e que, por mais promessas que se façam na política nacional, só poderão ser resolvidos ao nível europeu.

Mas as coisas não deviam ser assim. Em muitos casos, a forma como cada partido se posiciona face à União Europeia – mesmo que as suas ideias apareçam escritas em letras pequenas – diz mais sobre os seus objetivos ideológicos do que a maior parte das reformas que sugere nos programas de governo. E, por outro lado, a família política que cada partido escolhe integrar no Parlamento Europeu é quase sempre de uma enorme eloquência e clareza sobre o que cada organização pensa acerca dos valores e princípios do projeto europeu.

Por isso, por mais que André Ventura tente argumentar que o Chega não é contra a União Europeia, a verdade é que o seu partido está incluído no autodenominado grupo Identidade e Democracia, que pretende destruir, pelos alicerces, o projeto europeu que, nas últimas décadas, transformou a Europa num espaço de paz, de desenvolvimento social e de liberdade. Sabemos que não se trata de um grupo homogéneo e que, consoante a tática do momento, cada um dos partidos integrantes pode até dizer uma coisa e o seu contrário. Mas sabemos também que tanto o Lega italiano como o Rassemblement National, de França, e a AfD alemã preconizam uma Europa menos solidária, menos coesa, menos livre e menos democrática.

A questão é que muitas das ideias mais radicais que estes partidos assumem abertamente nos seus encontros – onde, muitas vezes, cada um tenta mostrar-se mais extremista do que o outro – passaram a ser, ultimamente, ocultadas ou menosprezadas nos discursos de campanha eleitoral. Assistiu-se a isso em França, nas presidenciais de 2022, quando Marine Le Pen surgiu com um discurso mais moderado, numa estratégia de tentar apagar a imagem xenófoba, racista e extremista que lhe estava colada. Agora, nas eleições holandesas, o partido radical de Geert Wilders foi o mais votado, com uma tática semelhante: para dar um ar mais respeitável, quase fez cair a sua velha bandeira de realizar um referendo para a saída da União Europeia e procurou apenas “cavalgar” o tema do controlo da imigração, que acabou por contaminar outros partidos – com os eleitores, como é óbvio, a preferirem o original à cópia.

Em Portugal, começa também já a perceber-se que André Ventura quer seguir o mesmo caminho e fazer uma campanha em que seja visto como um parceiro responsável para uma possível coligação de direita. O problema é que, como sempre, o diabo está nos detalhes. Como se viu, aliás, no encontro com os membros da sua família política europeia, em que defendeu, sem pestanejar, a teoria racista da grande substituição, que inflamou os discursos anti-imigração e que tem sido fonte de inspiração para várias tragédias e massacres.

É por estas razões que o debate político precisa de ser analisado cada vez mais em diversos planos. Perceber que Europa pretende um partido pode ser mais esclarecedor sobre as suas ideias e propósitos do que qualquer proposta que apresente sobre a subida das pensões ou a redução de impostos. Como, igualmente, perceber o que cada partido pensa – e que medidas quer aplicar – sobre o combate às alterações climáticas pode ser mais significativo sobre a sua visão de futuro do que qualquer declaração grandiosa que se faça sobre conceitos abstratos, como os jovens ou o… mar (dois clássicos de todos os programas). Nunca como agora, nesta era de informação permanente, a atenção aos detalhes foi tão importante: pode ser a distinção entre a clareza e a ambiguidade… enganadora.

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O diabo dos populistas está nos detalhes sobre a Europa

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29.11.2023

Se nada de excecional tivesse ocorrido, o caminho para as eleições europeias de junho do próximo ano seguiria o curso normal entre nós: condenadas a ser observadas apenas pelo prisma da política interna, como um barómetro para avaliar a resistência do Governo após a sucessão de “casos e casinhos” e, em simultâneo, atestar a popularidade de um líder da oposição incapaz de “descolar nas sondagens”. Até há poucas semanas, toda a campanha estava destinada a ser dominada pelas questões nacionais, da Saúde à Educação, deixando para um plano secundário os temas decisivos que têm de ser tratados na agenda europeia, como a transição energética, a política migratória, o alargamento europeu, o desenvolvimento económico, a estratégia de defesa, o aprofundar das liberdades e garantias no seio do bloco. De repente, tudo mudou. Agora, com legislativas antecipadas para 10 de março, as europeias de junho arriscam-se até a ser atiradas para a mais profunda irrelevância – porque já não servem de barómetro para nada. Com isso, também se perderá, mais uma vez, a oportunidade de debater os assuntos que realmente impactam o nosso futuro e que, por mais promessas que se façam na política nacional, só poderão ser........

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