O medo é um sentimento primário e, por isso, facilmente acionável. Basta que sejamos confrontados com uma ameaça próxima, que já tenhamos identificado como sendo perigosa ou sobre a qual não possuamos grande informação, e, a partir daí, o nosso organismo faz disparar os mecanismos de defesa – aquilo que qualificamos como instinto de sobrevivência.

O medo do desconhecido faz parte da nossa essência. Por isso, pode ser desencadeado por uma qualquer habilidade, um exagero, uma mentira ou até pela ignorância. Nessa medida, torna-se ainda mais fácil fomentar o medo em relação a alguém que percecionamos como diferente da nossa ideia de “nós” – seja pela cor da pele, crença religiosa, costumes culturais, ideologia que defende ou até estrato social –, apesar de partilharmos o mesmo código genético e, com grande dose de probabilidade, um antepassado longínquo, nos confins da pré-História.

Se é verdade que a esmagadora maioria dos humanos abandonou o nomadismo há milhares de anos, na época do Neolítico, também é preciso ter presente que a Humanidade sempre esteve marcada por fluxos migratórios – impulsionados, quase sempre, por um sentimento básico de sobrevivência e de busca de uma vida melhor.

Convém ter isto tudo presente quando se observa atualmente, na Europa, o fomento do medo face aos imigrantes, com armas cada vez mais poderosas e campanhas de desinformação que nos remetem para os tempos mais sombrios que o continente viveu no século XX. O objetivo é o mesmo de sempre: tentar culpar as pessoas diferentes de “nós” de todos os males e até considerá-las como a maior ameaça a um futuro de paz e de prosperidade, que, segundo gritam os discursos mais extremistas e de um nacionalismo inexistente e bacoco, só poderia ser garantido por uma sociedade etnicamente igual – mesmo que tenha sido nessas condições que ocorreram as guerras mais fratricidas na Europa.

O que a realidade nos ensina, no entanto, é que as sociedades mais dinâmicas, prósperas e atrativas são, precisamente, as que têm as populações com maior diversidade – aquelas em que os nascidos no estrangeiro ou os filhos de pais migrantes são, tantas vezes, a maioria e o motor de inovação e de desenvolvimento. Isso é particularmente visível nas cidades mais vibrantes do planeta, em especial aquelas onde se misturam diversas etnias e nacionalidades de uma forma tolerante e harmoniosa, sem que nenhuma seja obrigada a perder as suas caraterísticas e os laços de identidade.

Qualquer português com um mínimo de memória sabe o preço a pagar por uma política baseada no “orgulhosamente sós”. E, se acrescentar a essa memória um pingo de decência intelectual, terá também de reconhecer que um país com o défice demográfico de Portugal, com uma das populações mais envelhecidas da Europa e do mundo, precisa necessariamente de imigrantes para desenvolver a economia e, em consequência, os níveis de bem-estar da população.

Ao contrário do que muitas narrativas recentes nos querem fazer pensar, a esmagadora maioria dos portugueses também reconhece que o País precisa de imigrantes para prosseguir com uma estratégia de progresso e de desenvolvimento. É isso que indicam os diversos estudos de opinião realizados no conjunto dos 27 países da União Europeia, em que a imigração só é vista como um problema por uma irrisória minoria de respondentes, e é isto que pode ser também testemunhado pela forma tolerante como diversas comunidades coexistem em diversos pontos do País, sem que se conheçam conflitos ou atritos na partilha do mesmo espaço público. Só que, mesmo assim, e para imitar a retórica que está em voga na Europa, as forças populistas e de direita radical insistem na diabolização dos imigrantes, mesmo que as estatísticas económicas, de contribuição para a Segurança Social e de criminalidade sejam cristalinas a derrotar todos os seus argumentos.

O debate sobre a imigração é necessário, mas precisa de assentar em dados sólidos e comprovados, de ser feito com base na realidade e não no medo. É um debate sobre o futuro do País e, por isso, sobre a integração de quem vem de fora, com um projeto de vida, com respeito pelos direitos humanos, a justiça social e a valorização do trabalho. Deve ser um debate para ajudar a unir e não para cavar trincheiras. Orgulhosamente para todos.

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Orgulhosamente todos

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31.01.2024

O medo é um sentimento primário e, por isso, facilmente acionável. Basta que sejamos confrontados com uma ameaça próxima, que já tenhamos identificado como sendo perigosa ou sobre a qual não possuamos grande informação, e, a partir daí, o nosso organismo faz disparar os mecanismos de defesa – aquilo que qualificamos como instinto de sobrevivência.

O medo do desconhecido faz parte da nossa essência. Por isso, pode ser desencadeado por uma qualquer habilidade, um exagero, uma mentira ou até pela ignorância. Nessa medida, torna-se ainda mais fácil fomentar o medo em relação a alguém que percecionamos como diferente da nossa ideia de “nós” – seja pela cor da pele, crença religiosa, costumes culturais, ideologia que defende ou até estrato social –, apesar de partilharmos o mesmo código genético e, com grande dose de probabilidade, um antepassado longínquo, nos confins da pré-História.

Se é verdade que a esmagadora maioria dos humanos abandonou o nomadismo há milhares de anos, na época do Neolítico, também é preciso ter presente que a Humanidade sempre esteve marcada por fluxos migratórios – impulsionados,........

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